Tempos houve em que a grande produção americana reunida, entre outras, sob a bandeira Made in Hollywood edificava o seu império cinematográfico naquilo que se designava para efeitos de propaganda a dream factory, a fábrica de sonhos que, submetida a uma série de regras corporativas, consubstanciadas no studio system, estava longe de ser um lugar idílico para quem lá queria fazer carreira com fama e proveito, nomeadamente nos escalões intermédios e nos menos especializados da indústria. Neste contexto foi produzido e estreado esse clássico dos clássicos intitulado «The Wizard of Oz» («O Feiticeiro de Oz»), 1939, assinado por Victor Fleming, mas por onde andaram outros realizadores contratados pela MGM, como King Vidor, George Cukor e Richard Thorpe.
Durante muitos anos, os produtores que dominavam os ciclos e as agendas do que se devia ou não fazer para obter o máximo lucro nas bilheteiras procuraram concentrar num só filme, sobretudo nos que se inseriam na mais generosa série A, a esmagadora maioria dos meios de produção e dos recursos financeiros libertados pelos verdadeiros donos dos estúdios aquartelados na meca do capital, Wall Street (Nova Iorque). Era uma estratégia destinada a capitalizar de uma só vez (não contando com a futura exploração comercial noutros ecrãs e mercados) o investimento realizado. Por isso, uma grande produção como a citada, ou ainda outras e até melhores que podia aqui dar como exemplo, raras vezes foram objecto de sequels ou prequels.Na verdade, já imaginaram o que seria se a febre da continuação, sobretudo a qualquer preço, prevalecesse ou fosse norma? Será que conseguem visualizar um Clark Gable a dar seguimento ao seu “Frankly, my dear, I don’t give a damn” num «Gone With The Wind – Part Two»? Será possível vislumbrar o que seria se em «The Searchers» («A Desaparecida»), 1956, essa sublime obra-prima dirigida por John Ford, a porta que se fecha no final (como contraponto da mesma porta que se abre ao início) fosse agarrada por alguém que dissesse ao John Wayne (que entretanto se afastara) para voltar para casa, e que o actor no papel que lhe coube e soube desempenhar de forma exemplar aproximasse o rosto da objectiva e piscasse o olho anunciando, como não quer a coisa, novo filme para o Natal do ano que vem?
De facto, cruzes canhoto, mas há que dizer que quando o Cinema precisou de reforçar o combate contra a fuga para o pequeno ecrã, um grupo de aguerridos cineastas inventou, ou melhor, reinventou, um novo paradigma de produção que, no caso dos então jovens Steven Spielberg e George Lucas, foi buscar aos serials (nem sequer ao cinema de série B, mas sim aos episódios da série Z), muita da inspiração para os filmes de série, e em série. Veja-se o caso dos protagonizados pela personagem Indiana Jones e os da saga galáctica dos diferentes e alternados episódios do conceito Star Wars. Foi com o devido e calculado engenho, a que adicionaram a pompa e o estrondo mediático, que esta geração lançada para a ribalta nos anos setenta do século XX acabou por impor uma nova e deveras oleada dinâmica de produção, distribuição e exibição, a nível global, que fez deles multimilionários e donos de uma nova Hollywood que, entretanto, já não ocupava a posição geográfica de solar conveniência nem ostentava a imagem de marca onde a antiga vingara, crescera, e de certo modo morrera.

Fico por aqui nesta brevíssima introdução ao nascimento de uma era, a que viu o Cinema passar a contar com uma lógica que pouco antes rondava a prática corrente do modelo da produção audiovisual, e passo a destacar uma produção herdeira desse espírito, nada mais, nada menos do que a segunda fatia do “bolo” doce e amargo que se apresenta sob a designação «Wicked For Good» («Wicked Pelo Bem»), 2025, de John M. Chu. Estamos de novo no domínio da pura e dura fantasia devedora do imaginário da sua mais ou menos vaga matriz, o primitivo «O Feiticeiro de Oz», e da sua mais sólida identidade, o romance “Wicked: The Life and Times of the Wicked Witch of the West” e a correspondente versão musical da Broadway.
Todavia, neste exercício de esticar a massa que antes fora usada e que na primeira parte dera lugar a bons e saborosos resultados, o simplesmente «Wicked», 2024, os ingredientes aplicados um ano depois ao recheio da fórmula original fermentaram e deram ao pitéu cores mais sombrias e um gosto menos suave. Mas, ao contrário do que já li e ouvi, esse constitui precisamente o aspecto que mais me agradou e aquele que proporciona um dos mais delirantes e surrealistas momentos do filme, a invasão devastadora e demolidora de um grupo de animais que estavam enjaulados e que por artes mágicas e do destino se libertam do cativeiro forçado e dão cabo de um casamento anunciado como a união das uniões entre a fada boa, Glinda The Good (Ariana Grande) e um brioso militar recentemente promovido, o excelentíssimo Príncipe Fiyero (Jonathan Bailey). Para além da cerimónia, as desaustinadas criaturas destroem os sumptuosos cenários materiais e virtuais da dita boda e provocam a fuga dos convidados que nas duas partes se apresentam como o suprassumo daquela sociedade de faz-de-conta, a saber, a classe privilegiada que beneficiava dos favores de um mundo fechado sobre si mesmo e até certo ponto manipulado por um Feiticeiro que mais parece um vilão carnavalesco, ainda por cima sem os ditos no sítio para levar até ao fim os seus planos de ambígua e melífera estratégia para a Terra de Oz.
De facto, até a fofinha e alucinada Glinda, na vertente de boa fada, parece mais apostada em dar a volta ao que se perfila diante de si perspetivando um futuro que não passa necessariamente pela conciliação entre o que fora antes e aquilo que ela e as personagens suas interlocutoras precisam de ser num outro universo por construir.

E agora, senhoras e senhores, chegou o momento por muitos longamente esperado. Não, não me esqueci daquela que continua a ser a grande protagonista dos dois “Wicked”, a famosa e sempre verde (mas madura no que diz respeito a artes e valores de composição e representação) Cynthia Erivo, no papel de Elphaba, a Wicked Witch of the West. Nunca será demais salientar que ela rouba qualquer cena em que entra e fá-lo com mestria e justificada qualidade no plano narrativo. Passados cinco anos ficcionais após a primeira investida em 2024, os argumentistas consolidaram esta personagem como a má da fita, pelo menos aos olhos dos que a culpam pelos males que afligem o quotidiano muito colorido, mas confinado da Emerald City. Mas, como se costuma dizer, por vezes a bruxa malvada surge também como a mais sedutora e aquela que melhor pode conduzir a acção para caminhos que despertem o espectador e o façam, precisamente, sonhar, como era suposto sonharmos na era em que a Dorothy não era apenas uma sombra fugaz, mas uma rapariga de corpo inteiro com ar de menina interpretada pela luminosa Judy Garland. Depois de sair da floresta onde se refugiara e fora depois perseguida, Elphaba visita a inválida Nessarose (Marissa Bode), e do confronto “familiar” com a Wicked Witch of the East irá resultar o abrir de portas para se aventurar até um outro confronto de maiores proporções, o que irá acontecer num face a face com o Feiticeiro de Oz (Jeff Goldblum).
E mais não digo, a não ser que as voltas e reviravoltas, nomeadamente no campo dos arrufos amorosos e no dos conflitos de poder(es) das wonder girls e do wonder kid, serão o prato forte e os condimentos da iguaria cinematográfica que será polvilhada, aqui, por uma pitada de sal, acolá, por uma pitada de açúcar de cana (daquele que fica agarrado aos dedos e se lambe quando ninguém está a ver).

Enfim, posso ainda levantar o véu sobre a existência de uma negríssima sequência em que se prenuncia um linchamento que constitui um eco sinistro do que na verdadeira História dos good old USA acontecia com alguma frequência por razões que a razão desconhece. E a desesperada procura de recuperar uns sapatinhos do mais kitsch que se possa conceber mas com lugar cativo nas raízes desta história. E uns feitiços que justificam a presença de outras figuras e o comportamento das mesmas a partir do imaginário oziano, como o Homem de Palha, o Leão Medroso e o Homem de Lata. Por fim (a ver vamos), um balde de água fria que acaba por ser uma banhada e, agora sim, mais não digo. Tudo isto embrulhado numa fuga para a frente movida a efeitos visuais (esses, sem qualquer dúvida, do melhor que o Cinema produz nos dias de hoje, e magníficos para se verem em 3D) rumo a um espaço algures, não numa galáxia distante mas numa wasteland muito parecida com o visual de alguma ficção científica, cores frias e agrestes que, ou muito me engano ou anunciam o próximo “Wicked”, que já não será “For Good” mas provavelmente “Forever” ou mesmo “Forever and Ever”.
Regresso aos valores de produção mais óbvios apenas para de entre eles salientar duas componentes que se mostram mais ou menos inalteradas na sua eficácia: a musical, cujas canções (para quem gosta do estilo) irão ocupar seguramente lugar de destaque nas listas dos prémios que em breve irão começar a ser distribuídos, e a dos figurinos, onde se nota a visível presença de um equilibrado e muito rebuscado guarda-roupa que merece a nossa melhor atenção e a dos que votarem nos principais prémios promovidos pela indústria nessa categoria.
Título original: Wicked: For Good Realização: Jon M. Chu Elenco: Cynthia Erivo, Ariana Grande, Jeff Goldblum, Michelle Yeoh, Jonathan Bailey, Ethan Slater, Colman Domingo, Marissa Bode, Bowen Yang, Peter Dinklage Duração: 138 min. EUA, 2025

