Page 9 - Revista Metropolis nº81
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ODISSEIAS DE WALTINHO
CINEMA BRASILEIRO
RODRIGO FONSECA
Autopsia em corpo vivo latino-americano da atualidade encontraram o
dos fantasmas da ditadura seu combustível de arranque no périplo ibérico
brasileira, «Ainda Estou de um jovem que traduzia as angústias de toda
Aqui», baseado no romance uma geração. No caso, ele fala da geração que foi
homónimo de Marcelo Rubens atropelada pelo turbilhão “colorido”, ou seja, o
Paiva, vai marcar o regresso confisco da poupança pelo ex-presidente Fernando
de Walter Salles às longas- Collor de Mello (1990-1992). Confisco que reduziu a
metragens de ficção após um pó o sonho democrático dos mesmos brasileiros que
hiato iniciado em 2012, com o ajudaram eleger o Caçador de Marajá alagoano ao
lançamento de «Pela Estrada Fora». Mariana Lima Palácio do Planalto.
é a estrela do projeto, de tintas autobiográficas, no
papel de Eunice a mãe de Marcelo, cuja vida virou do Há todo um arcaboiço político servindo de óleo
avesso após o marido, Rubens Paiva, ser preso por diesel ao tanque de «Terra Estrangeira» [1995], que
agentes do governo militar, sendo, a seguir, torturado mantém o filme vivo desde sua trajetória pelas
e morto. Pelo meio da dor, ela se reinventou. Voltou a salas de exibição. Uma redonda reflexão sobre o
estudar, tornou-se advogada, defensora dos direitos sentimento de desilusão para com o Brasil garantiu
indígenas. Nunca chorou em frente das câmaras. Ao a essa produção uma eternidade para além da sua
falar de Eunice, e da sua última luta, desta vez contra requintada experimentação narrativa, marcada por
o Alzheimer, o autor fala também da memória, da um diálogo com o thriller noir americano dos anos
infância, oferecendo a Salles a chance de exorcizar 1940 e 50.
males que levaram o Brasil ao atual desgoverno. O
interesse da cinefilia pelo projeto promove uma No seu currículo, «Abril despedaçado» (2001) e
corrida pela obra do realizador de «Central do Brasil» «Diários de Che Guevara» (2004) são projetos
(Urso de Ouro em 1998), começando por «Terra irmãos na estrada da arte que, sob tintas beatniks,
Estrangeira», filme de culto das narrativas policiais aos moldes do «On the road» literário de Jack
e sociais, que ele rodou em parceria com Daniela Kerouac, tenta entender a agonia existencial que
Thomas. A trama se concentra na viagem que leva impulsiona os homens a imitarem Ulisses numa
o aspirante a ator Paco (Fernando Alves Pinto) para odisseia pessoal em busca de sentido. Em todos eles,
além dos limites da sua própria insatisfação com o Salles volta suas lentes para pessoas que, como Paco,
seu país de origem, aos braços de Alex (Fernanda parecem perdidas nos limites econômicos, éticos e
Torres), conterrânea dele que vive em Portugal. até familiares de sua região de origem. Na distância
Calcados quase que permanentemente no binómio está a liberdade. E onde há a liberdade, deve haver a
"desterro / reencontro", os filmes que tornaram esperança. Algo que em “casa - sobretudo se esta casa
Salles um dos mais influentes nomes do cinema for o Brasil de Collor - acabou.
c r ó n i c a
METROPOLIS DEZEMBRO 2021 8