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A MULHER QUE ESCREVEU OUTRO

                             PAPEL PARA HOLLYWOOD




                                                  CINEDOQUE

                                                  SARA QUELHAS




                                Há   presenças   que    não   O mesmo se pode dizer de tantas outras figuras
                                precisam de disputar o centro   que interpretou nessa época: mulheres que
                                do palco para mudarem a       existiam para lá do romance, que amavam sem se
                                história, ou a forma como a   anular, que erravam sem pedir desculpa, que não
                                vemos. A atriz Diane Keaton,   tinham de ser perfeitas para merecer o ecrã. Numa
                                que  faleceu recentemente,    Hollywood habituada a embalagens previsíveis,
                                foi uma delas. Não gritou,    Diane Keaton abriu espaço para personagens
                                não se dobrou ao molde, não   femininas que respiravam vida própria.
                                pediu licença: simplesmente   Num universo como o de Hollywood, que tantas
            apareceu – e, ao fazê-lo, reescreveu o papel da   vezes descarta o que envelhece e idolatra o que
            mulher no cinema. Nos gestos aparentemente        surge de novo, Diane Keaton foi a prova viva de
            tímidos, nas personagens que pareciam tropeçar    que  a relevância não tem  prazo.  A sua carreira
            nelas próprias e acabavam por revelar uma força   atravessou décadas sem perder autenticidade nem
            inesperada, Diane provou que os papéis femininos   pertinência, porque nunca tentou ser outra coisa
            não cabem em estereótipos. Agora que a sua voz    senão ela própria. Recusou a corrida pela juventude
            se cala, o silêncio que deixa tem o tamanho das   eterna e deixou que o tempo marcasse também as
            personagens que nos ensinou a  ver de outra       personagens que interpretava: mulheres maduras,
            maneira.                                          complexas, cheias de vida interior. Diane não
            Durante décadas, o cinema americano ensinou-      correu atrás das modas; fez com que o cinema
            nos a olhar para as mulheres através de um        tivesse de a acompanhar.
            guião  previsível:  musas  inspiradoras  ou  donas   Porque o que Diane Keaton fez não se limitou
            de casa perfeitas, objetos de desejo ou presenças   ao ecrã: atravessou-o. As suas personagens, com
            secundárias ao serviço de histórias contadas      humor e vulnerabilidade, espelharam as nossas
            por homens. Diane Keaton entrou nesse cenário     próprias contradições e ensinaram-nos a olhar
            sem se encaixar em nenhuma dessas gavetas. As     para elas sem vergonha. Ao vê-la rir às gargalhadas
            suas personagens não eram a projeção idealizada   de si mesma, tropeçar, apaixonar-se, falhar e
            do feminino: eram mulheres com contradições,      recomeçar, aprendemos que a imperfeição não é
            nervos  expostos,  inteligência  viva  e  fragilidades   fraqueza – é humanidade. E nessa humanidade
            à vista. Riam alto, pensavam depressa, hesitavam   partilhada, Diane ajudou-nos a ver-nos com mais
            e voltavam a avançar. Eram humanas, demasiado     ternura e menos exigência. O cinema que habitou
            humanas; e foi essa humanidade, longe dos         não era um palco distante: era um espelho onde
            arquétipos, que ajudou a abrir caminho a um novo   cabíamos todos.
            olhar sobre o que uma mulher podia ser no ecrã.   Agora que Diane Keaton se despede, o que fica
            Basta recordar Annie Hall, a personagem que       não são apenas filmes, prémios ou personagens
            lhe valeu o Óscar de Melhor Atriz em 1978, para   icónicas. Fica a ideia de que o feminino pode ser
            perceber o alcance dessa mudança. No filme        muitas coisas ao mesmo tempo, e que nenhuma
            realizado por Woody Allen, Diane Keaton não era   delas precisa de pedir desculpa por existir.
            a musa que orbitava em torno do protagonista:     Ao longo da sua carreira, Diane provou que a
            era o centro de gravidade da história, com a sua   complexidade não é um defeito a esconder, mas
            voz, as suas dúvidas e o seu humor desarmante.    a  matéria-prima  de  personagens  verdadeiras
            Annie não se definia pelo amor que recebia, mas   e inesquecíveis. Mostrou que envelhecer é
            pelo modo como amava e se procurava a si mesma    outra forma de continuar, que a autenticidade
            –  e  foi  essa  autenticidade,  feita  de  fragilidade   resiste ao tempo e que a imperfeição pode ser
            e inteligência, que a tornou inesquecível.        revolucionária.








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