Se dissermos que «Dirty Difficult Dangerous – Sujo Difícil Perigoso» é uma história de amor entre uma imigrante e um refugiado, o que chama a atenção não é, por certo, a parte da “história de amor”. Porquê? Porque cada vez mais a importância dos filmes se mede pelos seus temas, sobretudo sociais, fazendo com que se confunda essa importância com a qualidade. Como se uma coisa levasse à outra… E é aí que este título do libanês Wissam Charaf surge como lufada de ar fresco: o seu foco inequívoco é uma história de amor, que acontece ser protagonizada por uma imigrante etíope, Mehdia, e um refugiado sírio, Ahmed, ambos figuras presas a uma existência sem futuro na cidade de Beirute.
Através deste retrato de linhas simples, Charaf permite-se sondar alguns aspetos da realidade libanesa, como seja a kafala, um sistema de escravatura moderna em que jovens mulheres africanas e asiáticas são contratadas como empregadas domésticas, perdendo praticamente o contacto com os familiares (não é exclusivo do Líbano, mas tem uma expressão particular nessa sociedade, como o comprova um bom documentário de Roser Corella, «Room Without a View»). E ainda assim, o realizador não faz tese. Aproxima-se da rotina de Mehdia apenas para dar o lado cómico da sua triste condição de vida numa casa onde o marido da patroa, um ex-coronel aposentado, “se transforma” a meio da noite em Nosferatu…
Nestes termos de uma loucura mansa, trabalha-se aqui um cenário em profunda negação do miserabilismo tradicional, sem deixar de conter uma leitura política. Digamos que os amantes desfavorecidos de «Dirty Difficult Dangerous – Sujo Difícil Perigoso» são personagens kaurismäkianas, que se relacionam com os factos trágicos sem exaltação, e com uma postura que sinaliza a réstia de esperança possível, uma crença humanista que não pede elaboração. E esse contraste entre a circunstância concreta e a esperança adquire contornos de fantasia quando a personagem de Ahmed começa a revelar uma condição física que extravasa o realismo: o seu corpo está lentamente a transformar-se em metal, devido à exposição a uma bomba na Síria (como se a memória coletiva lhe invadisse o corpo). Sem precisar de explicações científicas, o filme faz desse apontamento de fábula um elemento de leveza estilística, afastando o retrato sisudo de uma realidade dura para lhe conferir uma linguagem terna, colorida e amena. Quantos filmes com este “tema” são capazes de o fazer?
Título original: Dirty Difficult Dangerous Realização: Wissam Charaf Elenco: Clara Couturet, Ziad Jallad, Darina Al Joundi Duração: 83 min. Origem: Líbano/França/Itália/Catar, 2022
[Texto publicado originalmente na Revista Metropolis nº99, Outubro 2023]
https://www.youtube.com/watch?v=tUSqHmIJMO8