Page 79 - Revista Metropolis nº89
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     precisão de ourives na construção de planos) e o
                                                              troféu Marcello Mastroianni de Melhor Intérprete
                                                              Revelação, conferido à interpretação algébrica da atriz
                                                              Taylor Russell, «Ossos e Tudo» apresenta ao cinema
                                                              uma nova raça de seres fantásticos: os Devoradores.
                                                              Não confundam essa “espécie” com o Dr. Hannibal
                                                              Lecter, o psicanalista vivido por Anthony Hopkins
                                                              em «O Silêncio dos Inocentes» (1991) ou com o
                                                              psicopata da série «DAHMER - Monstro: A história
                                                              de Jeffrey Dahmer» lançada em 2022 pela Netflix.
                                                              Esses dois tinham a compulsão de comer pessoas
                                                              como reflexo de uma fratura perversa na sua psique.
                                                              Os Devoradores de Guadagnino, entre eles a jovem
                                                              Maren (Russell) e o on the road Lee (Chalamet), são
                                                              como vampiros: têm uma necessidade biológica de
                                                              se alimentar de carne humana para sobreviverem.
                                                              E têm uma série de habilidades inerentes a essa
                                                              fome insaciável, como um olfato apurado. Lee é um
                                                              Wolverine, um mutante que é o melhor que faz. A
                                                              diferença dele para o X-Man da Marvel é que ele não
                                                              tem motivo algum de se sacrificar por ninguém.
                                                              O que Guadagnino propõe a partir dessa premissa
                                                              da ordem do sobrenatural é uma mistura de terror,
                                                              filme de amor (daqueles de suspirar) e road movie.
                                                              É um cruzamento beat de «Os Noivos Sangrentos»
                                                              («Badlands», 1973), de Terrence Malick, com «Fome
                                                              de Viver» («The Hunger», 1983), de Tony Scott (1944-
            drama romântico que a Academia de Artes e Ciências   2012). De «Os Noivos Sangrentos» Guadagnino
            Cinematográficas de Hollywood premiou, Chalamet   inspira-se no espírito cartográfico de estudar uma
            devorava a ideia de um amor perfeito, atirando-se nos   América profunda (e falida), com um casal alienado
            braços de um orientando do seu pai. Em «Suspiria»   das normas morais, não por rebeldia teen, mas por
            (2018), impecável remake do filme de culto lançado   uma insatisfação essencial. De Scott, ele inspira-se na
            por Dario Argento em 1977, Guadagnino retratava   sofisticação e um existencialismo melancólico. Não
            mulheres a devorar almas, num ritual de feitiçaria   por acaso, usa “Atmosphere”, dos Joy Division. Na
            adequado à Guerra Fria.                           sua fotografia, assinada por Arseni Khachaturan (de
            Na série «We Are Who We Are» (2020), Guadagnino   «O Começo» (2020)), vemos o interior dos EUA num
            apresentava jovens a refastelarem-se no apetite voraz   pleno vazio, um desolamento digno de uma cidade
            pela descoberta, alimentando-se de experiências e   fantasma. Desse mundo desolado brota um monstro,
            desilusões. Em «Ossos e Tudo» uma adaptação do    Sully, um Devorador carente que Mark Rylance
            romance homónimo de Camille DeAngelis, com o      constrói nas raias do esplendor, a fim de nos lembrar
            argumento de David Kajganich, “devorar” significa   que estamos, sim, diante de um thriller de terror. O
            comer a carne de pessoas. Mas leia “canibalismo”   horror da insaciabilidade. E ela uiva. Uiva verdades
            como sendo um manifesto antropofágico. E poético. A   sobre um país que se redesenha politicamente.
            sua poesia amplifica-se na fúria de Chalamet.
                                                              A partir desse ruído, Guadagnino evolui e afirma-
            Premiado no Festival de Veneza, em setembro,      se como um dos grandes realizadores dos nossos
            com o Prémio de Melhor Direção (a coroar a sua    tempos. RODRIGO FONSECA
                                                                                          METROPOLIS JANEIRO 2023   79





