Page 11 - Revista Metropolis nº77
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FALTA MUITO PARA CHEGARMOS À
CABANA DO CÉU!
OZU DE JADE
CRÓNICA DE HUGO GOMES
Inicio esta rubrica em oposi- tornar-se num sucesso em diversas partes do país, o
ção à ideia alicerçada a uma que repercutiu, quer na representatividade (não au-
corrente de pensamento atual, tomática, convenhamos afirmar), quer na carreira de
de que certos temas e “mi- um dos mais importantes cineasta dessa indústria
norias” estavam expulsas na em tons dourados (sim, esse, Minnelli). O filme cen-
Hollywood clássica e só hoje tra-se nas aventuras e desventuras de um marido in-
são priorizados por essa “má- grato e apostador compulsivo, Little Joe (Anderson),
quina” no sentido de ousar cuja sua “má sorte” o coloca entre a vida e a morte,
consciências. Pois bem, pode estar datado, mas su- apenas poupado do destino certo graças às orações
giro este filme peculiar – «Cabin in the Sky» («Um dedicadíssimas da sua amada esposa, Petunia (Ethel
Lugar no Céu», 1943). Um musical pioneiro, não por Waters). Apesar disso, não se livrou da sentença di-
nos apresentar um emancipado Vincente Minnelli vina, estando na mira de um lacaio do próprio Dia-
na realização (em cumplicidade com o grande senhor bo e de um Anjo que jogarão pela sua alma. Tendo
deste género - Busby Berkeley - sombreado no esta- sido nomeado ao Óscar de Melhor Música Original
tuto de “não-creditado”), mas por “oferecer-nos” um - "Happiness Is a Thing Called Joe" – «Cabin in the
elenco inteiramente negro em meados da Segunda Sky» é, para todos os efeitos, um espetáculo à moda
Grande Guerra, numa altura em que atores e perso- de Hollywood, carregada por uma fantasia escapista
nagens afro-americanas eram cortadas para que as ao serviço dos bons costumes pregados por essa Casa
metragens pudessem estrear no sul dos EUA. Não foi de Cinema. Sob a dita perspetiva atual, os estereóti-
o primeiro da sua linha, é certo, antes dele, exem- pos raciais estão visíveis assim como a característi-
plares mais obscuros como «Hearts in Dixie» (Paul ca hipocrisia desta “fábrica de sonhos”, que se pode
Sloane, 1929), «Aleluia!» (o primeiro filme sonoro de verificar, por exemplo, num satisfeito protagonista
King Vidor, 1929) ou a recriação bíblica, «The Green no seu trabalho precário e árduo (apesar de ser uma
Pastures» (Marc Connelly e William Keighley, 1936) assumida fábula, ainda não se estava preparado para
chegaram a nós, cada um com o seu grau de contro- ver representado um afro-americano fora do traba-
vérsia, mas foi este conto moral e religioso composto lho forçado e segregado), declara viver num “país
por alguns dos talentos mais cobiçados da idealiza- livre”. São citações datadas sem pingo algum de cri-
da “Hollywood Negra” (Eddie 'Rochester' Anderson, ticismo à sociedade contemporânea, revelando-nos
Rex Ingram, a ascendente Lena Horne e o célebre um ainda longo trilho à nossa normalidade. Mas há
músico Louis Armstrong), a desafiar as convenções e que começar por algum sítio, não?
C R Ó N I C A
METROPOLIS JULHO 2021 11