«Zodiac» é um filme revolucionário em múltiplos aspectos mas sobretudo na sua matriz visual. O uso a cem por cento da abordagem digital no processo de filmagem faz de «Zodiac» o primeiro filme de Estúdio a utilizar plenamente as novas tecnologias. Muitos dos espectadores vão passar ao lado desta componente mas decerto vão sentir um realismo desmesurado ao visionarem «Zodiac».
David Fincher é um perfeccionista nada passa ao lado do seu olhar clínico, ele é tão obsessivo quanto os personagens do filme. Ele cria uma obra extraordinária, um marco neste ano cinematográfico, o tempo irá provar o seu significado.
«Zodiac» é um meticuloso procedimento de investigação a um serial- killer que assolou a região de São Francisco nos anos 70. É também uma cópia carbono de uma era de constante mudança: as atitudes, a sociedade e diferentes aspectos do quotidiano (música, televisão, cinema). O detalhe, no início do filme, com os logótipos, versão anos 70, dos Estúdios (Paramount/Warner) que produzem este filme, é muito mais do que uma recordação nostálgica da época: Fincher marca o seu território atirando os espectadores para uma viagem temporal.
Para David Fincher não deve existir um cabelo fora do sítio, as filmagens são efectuadas com base nas fotografias e relatos dos acontecimentos do período. Para o mesmo não bastou inserir os aspectos corriqueiros: a genial banda sonora; o guarda-roupa eclético; os cortes de cabelo. O cineasta vai mais além ao capturar a essência de paranóia que se estende aos media, que dão-nos relatos históricos e narrativos, que fazem avançar o filme. A utilização de ferramentas de comunicação e investigação do passado, o fax, a pesquisa na biblioteca ou no meio do vasto arquivo policial; não é esquecida pelo olhar clínico da realização. E o que dizer do peso da figura ficcional de Dirty Harry, na cidade de São Francisco, ele que tenta caçar o Zodiac no grande ecrã. Reparem na cena do cinema, não é por acaso que o stand-up de Dirty Harry ensombra os dois personagens que se cruzam à saída.
Os personagens de «Zodiac» estão ao serviço da história do assassino em série e das suas charadas que eram a imagem de marca do psicopata. Habilmente o argumento dispõe destes segundo os diferentes prismas da investigação. No início a ênfase é sobre Paul Avery (Robert Downey Jr.) o jornalista encarregue de escrever sobre os assassinatos; David Toschi (Mark Ruffalo) inspector responsável pelas investigações (inspiração ao personagem de cinema Dirty Harry); e finalmente com hora e meia de filme Robert Graysmith (Jake Gyllenhaal) o cartoonista do jornal, que torna-se o autor dos livros sobre o principal suspeito e que estão na origem deste filme. Existe um triângulo entre estes personagens, todos se cruzam e acabam de uma maneira ou outra por serem consumidos pelo Zodiac. Um clima de medo e perseguição versus a perversidade, de revelar o criminoso, era demasiado penoso sobre aqueles que estavam no encalço do assassino.
David Fincher transforma as cartas encriptadas, num personagem medonho, é um golpe de génio, a recepção das cartas no San Francisco Chronicle provoca gritos de horror. Veja-se, após os créditos iniciais do filme, os dois planos (Gylenhal) e a carta que lentamente se dirigem para o mesmo destino, a sala de reuniões, um encontro que transforma o filme. Esse objecto e as restantes provas ganham vida sobre a batuta de Fincher e substituem durante hora e meia o principal suspeito dos crimes. Os acontecimentos dos crimes estenderam-se ao longo de vários anos e numa grande amplitude de locais de crime. Todos os detalhes, a introdução de múltiplos personagens anexadas a uma data que surge no ecrã permite a contemporização dos acontecimentos por parte do público – são marcos da minúcia de «Zodiac». Um apontamento curioso, de trinta segundos, de um grande cineasta do estilo: a construção de um prédio marca a passagem do tempo (um ano) na vida das investigações.
«Zodiac» não está limitado a uma simples investigação jornalística, a vida dos personagens é também desenvolvida assistimos paralelamente, por exemplo, a evolução da vida amorosa de Graysmith.
Os espectadores que esperam encontrar um «Seven» nas salas de cinema talvez encontrem o passado do mesmo, um objecto mais prático e menos requintado mas de igual forma visceral. As sequências dos crimes são de uma crueza perturbante, são ocas de humanidade afinal é disso que se trata: tirar a vida a uma pessoa de uma forma desumana.
Ao terminar esta viagem alucinante fica uma certeza, este vai separar as águas, não será um sucesso mas não foi construído para tal, não serve os desígnios da máquina ou das bilheteiras. É ironicamente mais violento do que os teen slashers e não tem tabuletas apelativas ao público jovem. Muitos fiéis vão se agarrar a «Zodiac» da mesma maneira que o criminoso não desgrudava das suas obsessões. Para ver e rever.
Título original: Zodiac Realização: David Fincher Elenco: Jake Gyllenhaal, Robert Downey Jr., Mark Ruffalo, Brian Cox, Chloë Sevigny Duração: 157 min. EUA, 2007
[Texto originalmente publicado no site Cinema2000, 17 de Maio 2007]
https://www.youtube.com/watch?v=dJ0oNfjzx4k