A edição destes dois clássicos do mestre japonês Yasujiro Ozu (1902-1962) não pode ser dissociada de um fenómeno que tem marcado a actividade do mercado cinematográfico português desde 2012 — mais concretamente, a partir da reposição de Vertigo (1958), de Alfred Hitchcock. Assim, as salas escuras têm dado nova visibilidade a um número significativo de obras clássicas (de Casablanca a Ingmar Bergman), das mais diversas origens, de um modo geral com uma resposta muito interessante dos espectadores.
Se nos lembrarmos que, há alguns anos, estes (e outros) títulos de Ozu já tinham tido edições portuguesas, vale a pena sublinhar a insólita curiosidade: de facto, não é exactamente o DVD a duplicar a oferta das salas; foram estas que acabaram por integrar uma relação com as memórias cinéfilas que, afinal, já existia no DVD.
O acontecimento é tanto mais importante quanto Viagem a Tóquio e O Gosto do Saké — o primeiro a preto e branco, o segundo a cores — surgem em cópias impecavelmente restauradas, confirmando que a evolução do digital se consolidou, até mesmo no respeito das características específicas, mais ou menos remotas, da película de 35 mm.
Dizer que os dois filmes reflectem a obsessão de Ozu com as relações humanas no interior do espaço familiar é quase uma redundância. Na verdade, ele é um metódico retratista da coexistência pais/filhos, de algum modo multiplicando os efeitos de familiaridade na própria permanência de uma pequena troupe de actores que, por assim dizer, podemos ver envelhecer no interior do seu cinema — observe-se o protagonismo do admirável Chishu Ryu (1904-1993) nestes dois títulos.
Viagem a Tóquio centra-se na deslocação de um velho casal a Tóquio para visitar os filhos, deparando com um acolhimento ambíguo, feito de deferência e indiferença. Por sua vez, O Gosto do Saké segue as atribulações de um viúvo empenhado em conseguir um bom casamento para a sua filha. A observação metódica de gestos e comportamentos constitui apenas o sinal mais evidente de um cinema que, em última instância, dramatiza a inserção de cada ser humano no espaço (familiar) da sua existência. O lendário método de enquadramento e planificação de Ozu — com a câmara colocada muitas vezes ao nível do olhar das personagens sentadas nos tapetes caseiros, os “tatami”, dos lares japoneses — não é uma pirueta formalista, antes um primeiro elemento de entrada na arquitectura física e afectiva de uma familiaridade plena de regras e subentendidos.
Daí, claro, o valor sociológico do cinema de Ozu. Não que ele seja um cronista social (pelo menos, não no sentido formatado que tal noção adquiriu no nosso espaço televisivo). Há mesmo no seu cinema uma promessa de transcendência que afecta muitas das personagens, mesmo quando não parece ser partilhada pelo autor. Acontece que os seus filmes são também uma subtil desmontagem dos usos e costumes, distante de qualquer facilidade pitoresca, atendendo à sua expressão nos comportamentos individuais e de grupo. Não admira, enfim, que Viagem a Tóquio e O Gosto do Saké (este o seu derradeiro trabalho) correspondam também uma visão paciente, por vezes contundente, do distanciamento mútuo das gerações no Japão pós-Segunda Guerra Mundial.
Título original: Tokyo Monogatari + Sanma No Aji Realização: Yasujiro Ozu Elenco: Chishu Ryu, Setsuko Hara, Shima Iwashita. Duração: 136+112 min. Japão, 1953+1962
[Crítica publicada originalmente na revista Metropolis nº18, Março 2014]