«Uma Paixão Simples» chega, finalmente às salas de cinema, depois de alguns meses à espera que a pandemia lhe permitisse ter a estreia que merecia. Parte integrante da seleção oficial do Festival de Cannes e nomeado para Melhor Filme no Festival de cinema de San Sebastian, «Uma Paixão Simples» merece ser visto num grande ecrã, com todo o amor que lhe possamos dispensar, porque esse é o sentimento que Danielle Arbid coloca em todos os filmes que realiza. Durante a sua passagem por Lisboa, aquando da exibição do filme no LEFFEST’20 – Lisbon & Sintra Film Festival, a METROPOLIS conversou durante alguns minutos com a realizadora libanesa, sobre o filme, os atores e, em última instância, sobre o que pode acontecer quando nos apaixonamos loucamente.
Apesar dos diversos prémios já conquistados, dos seus trabalhos na ficção e documentários na primeira pessoa, dos atores com quem já trabalhou e da sua história pessoal de quem nasceu num cenário de turbulência política e social, e muitas vezes de guerra, Danielle Arbid invade o espaço com uma simplicidade e uma elegância que não deixa ninguém indiferente. A sua figura frágil, mas forte ao mesmo tempo, o sorriso discreto, mas genuíno, a inteligência de quem sabe o que quer, sem cair em falsos moralismos, a paixão que coloca naquilo que escolhe fazer, e a sensibilidade de filmar o outro sem o ferir na sua vulnerabilidade, são o cartão de visita para falar do seu mais recente filme: «Uma Paixão Simples», adaptado e realizado por si, num processo que demorou alguns anos até encontrar as condições (financiamento) para o conseguir.
O livro de Annie Ernaux
Adaptado do livro de Annie Ernaux, com o mesmo título e editado em 1991, o «Uma Paixão Simples» de Danielle Arbid nasceu muitos anos mais tarde, e o processo de descoberta do livro e a vontade de fazer algo para cinema foi tudo menos linear. Algures no caminho de ambas as autoras – Annie e Danielle – este filme ganharia forma no momento certo e com as pessoas ideais. “Li o livro de Annie Ernaux muitos anos depois de o mesmo ter chegado às livrarias, algures entre 2006 e 2008. Na altura não me imaginei a adaptá-lo para cinema. Apenas o li, como leitora”, confessa a realizadora.
Depois de o considerar um verdadeiro inventário do que se sente quando nos apaixonamos, Danielle Arbid decidiu oferecê-lo a todas as pessoas que conhecia e que estavam apaixonadas. “Porque pensava que era uma boa história, quase como um catálogo do que se sente quando estamos loucamente apaixonados. E essa é a escrita de Ernaux. Ela é muito precisa. Toma-se a ela própria como cobaia, para dizer exatamente o que acontece, como se fosse a história de cada um de nós.”
Sentindo que era um livro difícil de adaptar, devido ao grau elevado de intimidade e, sobretudo, à índole abstrata que abraçava o mesmo – afinal, era “a história desta mulher que está à espera de um homem para ter sexo com ele e de como ela se apaixona por ele” – teria de ser a vida a ter um plano maior para que tudo se conjugasse e este trabalho saísse da orquestração destas duas mulheres. “Em 2016, uma produtora pediu-me para eu adaptar uma história de amor à minha escolha. Como sabia que eu dirigia bem as cenas de sexo, porque o tinha visto num outro filme meu, disse-me que deveria haver sexo nessa história de amor”, avança a cineasta.
Nos seis meses de pesquisa que se seguiram, Danielle Arbid sabia que não queria escrever uma história, mas sim adaptar uma que já existisse, e a verdade é que se tornou uma tarefa hercúlea encontrar um livro que reunisse os dois ingredientes que não podiam desentrelaçar-se: o sexo e o amor. “Foi muito estranho, porque nunca encontrei um livro que tivesse o amor e o sexo ao mesmo tempo. Todos os livros que falavam de sexo era no sentido de experimentar sexo, sem emoções. E os livros sobre o amor não continham sexo, como se o amor fosse demasiado idealizado, para ser vulgar ou contemplar o sexo”, adiantou.
O objetivo era encontrar um livro sobre o amor puro, não necessariamente sobre o amor romântico ou clássico, mas algo que aproximasse a audiência – enquanto humanos que somos –, e sobre aquilo que acontece quando nos apaixonamos de verdade, sem pensar em regras ou crenças sobre o que pode ser considerado certo ou errado. Foi, finalmente, isso que encontrou no livro que tinha lido quase dez anos antes. “A Annie Ernaux dizia-o de uma forma única e universal e, ao mesmo tempo, muito íntima. E fê-lo de uma maneira muito pura. Eu queria contar esta história sobre como ela se apaixona, sobre o movimento de se apaixonar. E é sobre isto que o filme trata.”
A complexa premissa “simples”
Para quem ainda não leu o livro, “Uma Paixão Simples” é, de facto, muito simples na premissa, mas é muito encorpado nas diversas camadas que definem o estado de uma paixão. “«Uma Paixão Simples», de Danielle Arbid, é adaptado do romance homónimo de Annie Ernaux e conta a história da paixão, obsessão e dependência entre uma professora universitária e um diplomata russo”, assim é descrita a sinopse original do filme. Com uma sensibilidade e ausência de uma moral castradora, a realizadora oferece-nos muito mais do que um “simples” encontro apaixonado (ou não) entre duas pessoas – uma divorciada, independente, mãe solteira e professora de literatura, e um homem casado, russo, que depreendemos ter algum estatuto, mas de quem não chegamos a saber quase nada.
Assumindo o facto de vivermos em tempos modernos, Danielle Arbid reflete sobre as primeiras cenas. “O filme começa com um encontro sexual e torna-se atração que deriva em paixão e obsessão. Como se fossem os diferentes passos para atingir esse estado. Mas também gosto da forma muito moderna como a autora se expressa. Nós não sabemos como eles se conhecem. Eles estão apenas a ter sexo. E nós não queremos saber. Não é como nos filmes antigos, em que eles se conhecem, casam e têm sexo. Aqui é exatamente ao contrário.” Na verdade, e tal como a realizadora reforça, hoje em dia é fácil conhecer pessoas para ter sexo, em aplicações como o Tinder. Ou seja, “a coisa mais difícil já não é ter sexo. Mas é cada vez mais difícil as pessoas apaixonarem-se”, conclui.
O elenco perfeito
Com Laetitia Dosch e Sergei Polunin nos papéis principais, a seleção dos atores não foi ao acaso, mas também não foi algo premeditado. Foi, certamente, uma escolha feliz para o resultado pretendido. “Na verdade, passei anos à procura dos atores perfeitos. E quando conheci a Laetitia percebi imediatamente que só podia ser ela e mais ninguém. Porque ela é de facto independente. E, além disso, não é apenas atriz. Também escreve peças de teatro e faz direção artística, é uma one woman show. Ela inventa muitas coisas, é muito criativa e tem muita fantasia dentro dela. Além disso, não tem uma visão moral sobre a situação. Ela apenas fala de beleza, o que é diferente de outras atrizes que muitas vezes estão preocupadas apenas com aquilo que vamos mostrar delas: o peito, as mãos…. A Laetitia não pensa assim e eu também não. Por isso, tinha a pessoa perfeita para falar sobre tudo isto. Costumávamos falar do sentimento das cenas de sexo. Afinal, o que queriam dizer estas cenas de sexo?”, confessa Arbid.
Para o papel do homem misterioso por quem a personagem de Laetitia Dosch, Hélène, se apaixona loucamente, ao ponto de viajar ao país deste para poder, durante umas horas, cheirar o ar que ele respira, Danielle Arbid escolheu Sergei Polunin, de quem tinha guardado o recorte da capa de uma revista uns anos antes, e mesmo depois de lhe dizerem que isso seria impossível por ele ser considerado “Deus”, na Rússia. O famoso bailarino, que se tornou o mais jovem bailarino principal do Royal Ballet, abandonando a dança nesse mesmo instante, aceitou o desafio, daquele que seria o seu primeiro papel de protagonista. Sobre Sergei, Danielle Arbid fala carinhosamente sobre um ator generoso e de quem ficou amiga: “Tive a sorte de o conhecer e adoro-o. É um pouco autodestrutivo, mas com ele próprio, não com os outros. Ele nunca arrisca o trabalho dos outros. Foi um prazer imenso trabalhar com ele. Ele respeita verdadeiramente a mulher e respeita muito os artistas, e aceita o que quer que lhe digam. Foi difícil para ele, pois representou em francês e foi a primeira vez que assumiu um papel que não tem nada a ver com ballet. Além disso, teve que representar alguém que existe sobretudo na cabeça dela. Não era um papel tradicional. Ele vem e vai e desaparece, e de certa forma torna-se Deus na cabeça dela. Para um ator que tem de fazer este papel, e especialmente um homem que tem de “apagar” o seu ser, ele fez um trabalho incrível.”
Desejando muito voltar a trabalhar com o bailarino e ator ucraniano naturalizado russo, Danielle Arbid fala, ainda, sobre a forma como realizadora e ator encararam as cenas de intimidade física das personagens. “Questionávamo-nos sobre o que queria dizer cada cena. Não eram apenas cenas de sexo. Falávamos como poderíamos ser criativos e graciosos, delicados e elegantes. Quando eu dirijo uma cena de sexo, não penso em “filmes pornográficos”. Ou seja, não tenho uma moral julgadora. Eu vejo filmes pornográficos, mas não sou influenciada por eles. Sou influenciada por quadros, nos museus, por esculturas, e pela dança. Quero que, naquele momento, os atores estejam plenos de encanto e graciosidade. E quero que as pessoas se vejam a si próprias na cena. Não quero que apenas olhem para os atores. Quero que as pessoas sintam que estão naquele lugar, naquele momento. Tento, pelo menos.”
Ficar amiga do elenco e da equipa é uma prioridade para Danielle Arbid, e «Uma Paixão Simples» não foi diferente. “Adorei filmar com a Laetitia e o Sergei, e adorei as pessoas da equipa. Porque a minha forma de fazer filmes é realmente desfrutar disso. Se não me divertir, não faço. Isto porque nós temos a sorte de sermos artistas e de nos expressarmos, mesmo que seja difícil. Quando se dirige um filme, nós esperamos anos para o fazer e para vermos o produto final. Para o tornar real. Não é como ir para um escritório trabalhar. Nós vamos mesmo com muita alegria. Fazer cinema é juntar muitas pessoas diferentes numa equipa. Eu não posso fazer um filme sozinha, então, todos têm que estar envolvidos. É essa a magia.”
«Uma Paixão Simples» já está nos cinemas.