A primeira vez que vemos Marina (Daniela Vega) é através do olhar apaixonado de Orlando (Francisco Reyes), o seu amante. Ele vai buscá-la ao bar de um hotel onde ela canta. Orlando é um homem maduro, talvez uns 20 anos mais velho, mas a química e a cumplicidade entre os dois é inegável e sobrepõe-se a qualquer julgamento moral apressado. Depois de um jantar de aniversário, da promessa de uma viagem às cataratas de Iguaçu, eles dançam, fazem amor. Nessa mesma noite, que parecia perfeita, Orlando sofre um aneurisma e morre. No hospital, Marina é olhada de forma estranha, o médico levanta suspeitas sobre a sua real identidade, a polícia é chamada ao local, e, de repente, todos começam a tratá-la pelo pronome masculino. No cartão de identidade Marina chama-se Daniel.
Aquilo que nos mais de vinte minutos iniciais fora completamente irrelevante, a questão da identidade de género, torna-se o centro do filme. O clima de suspeição revela afinal um único crime: a relação entre duas pessoas que se amam. Aos olhos daqueles que os rodeiam esta relação só podia ser criminosa. “Perversão” é a palavra que Sonia, a ex-mulher de Orlando (Aline Küppenheim), usa para diminuir e denegrir Marina e a ligação que a unia a Orlando. Já a chefe da Unidade de Ofensas Sexuais presume que se tratasse de um caso de prostituição ou violação. Movida por uma curiosidade mórbida, a polícia sujeita Marina a um exame físico totalmente desnecessário onde ela é obrigada a despir-se totalmente e a ser fotografada. É abjecta a banalidade da violência, resultado do preconceito, da intolerância.
Mas «Uma Mulher Fantástica» não é um filme de agenda. Sebastián Lelio, que escreveu e realizou, não se deixa cair nunca numa onda panfletária. É claro que o facto de Marina ser transgénero é um factor de perturbação extra, mas ela não é reduzida a um símbolo da luta pelos direitos LGBT. Ela é um enigma. Um enigma de amor. Resiliente e corajosa, Marina faz justiça ao título que protagoniza.
Vencedor do Urso de Prata no Festival de Berlim para Melhor Argumento, «Uma Mulher Fantástica» está nomeado para os Globos de Ouro assim como para os Oscars na categoria de Melhor Filme Estrangeiro.
[crítica originalmente publicada na revista Metropolis nº56, Dezembro 2017]