UM HOMEM FURIOSO

UM HOMEM FURIOSO

Com seu jeito despojado e seu acento cockney, num diálogo duro, Jason Statham parece o oposto da apolínea figura de Gary Cooper (1901-1961), sobretudo na sua maneira de diminuir a densidade populacional da escumalha, por onde passa, na Los Angeles de «Um Homem Furioso», o filme mais exuberante de Guy Ritchie desde o seu «Sherlock Holmes», em 2009. Mas é impossível não estabelecer um paralelo entre ele e Cooper nesta longa-metragem sobre atos de justiça, que faturou US$ 56 milhões em apenas duas semanas de circuito. Contado com idas e vindas no tempo a partir de uma montagem sinuosa (de James Herbert), a saga de um sujeito de índole torta para vingar a morte do próprio filho, revela-se, pouco a pouco, ser mais do que apenas um ás no tiro, possui semelhanças com o filme que deu a Gary Cooper o Oscar de melhor ator, em 1953: «O Comboio Apitou Três Vezes» («High Noon»).

Embora tenha as mesmas manhas acerca da representação do submundo de todas as boas longas de Ritchie, «Um Homem Furioso» é menos um thriller noir e mais um filme de ação clássico. E, nos cinemas, a ação é filha cosmopolita do western. Jamais haveria Rambo sem Ethan Edwards, o maior cowboy de John Wayne, visto em «A Desaparecida» (1956). E a ação, tal qual o bang-bang, foi tornada proscrita pelos fariseus das fake news. É assim há muito tempo… Quando entrou na puberdade das artes modernas, após a II Guerra Mundial, o Cinema sacrificou o faroeste, tratando o filão como um sarcófago das narrativas épicas, incapaz de suportar o peso da psicologia que os anos de 1950 (em diante) passaram a impor aos storytellers, como o sangue na guelra e a essência dos personagens. Vem sendo assim também nos action movies, que parecem viver de franquias como “Fast & Furious” e “The Expendables”. Para dizer adeus ao género, que experimentou sobrevidas, sempre trágicas («Imperdoável»), niilistas (“Os Oito Odiados”) ou sazonalmente ambientalistas («Danças com Lobos» ou «First Cow»), Hollywood esculpiu «O Comboio Apitou Três Vezes», escalando como signo de bondade um xerife: Will Kane. Cooper o encarna como um herói outrora intrépido e, hoje, cansado pela idade, ciente de já ter dado à sua cidade o melhor de si. Mas um bandido do passado vai voltar, no comboio das 12 horas, para se vingar dele. Seria fácil, fácil para ele, fugir dali, deixando o passado para trás, e dar corda aos sapatos. Mas o molde a partir do qual Kane foi esculpido transforma barro em pessoas a partir de um encantamento, hoje cada vez mais esquecido, que prega: “Um homem tem que fazer o que um homem tem que fazer”. Kane fica não porque precisa, mas porque tem um dever, um fardo. O mesmo se dá com Statham nesta pérola de Ritchie. Aliás, é sempre isso o que ele faz, numa perspectiva autoral de construção de modos de atuar. Statham é um “ator autor”.

Centrado numa cruzada de vingança no universo do transporte de valores milionários, «Um Homem Furioso» revive (e renova) a bem-sucedida parceria entre Statham e Ritchie, cuja carreira foi revigorada após a versão live action de «Aladdin», em 2019. Os dois travaram amizade e parceria em «Um Mal Nunca Vem Só» (1998) e «Snatch – Porcos e Diamantes» (2001), repetindo a sinergia em «Revólver» (2005). Ritchie é um autor, mesmo dividindo opiniões no seu estilo quase epilético, de cortes velozes, que rendeu fortuna às superproduções (com o já citado Sherlock com Robert Downey Jr.) e debitou thrillers estilizados, como «O Agente da U.N.C.L.E.» (2015) e (o excepcional) «The Gentlemen: Senhores do Crime» (2019). Mas quando volta às telas com Statham, Ritchie surge com um novo dispositivo.

Diante de toda a crise que a pandemia gerou entre os exibidores, a chegada de um novo filme com o astro de «Crank – Veneno no Sangue» (2006) fazendo o que sabe fazer de melhor (distribuindo pontapés, queimando pneus e diminuindo a densidade populacional da vilania com tiros certeiros) é garantia certa de bilheteiras obesas e uma promessa de longevidade na TV e no streaming. A razão: na ponta do lápis, de 2002 (quando estreou a trilogia “Correio de Risco”) até 2019, quando foi visto em «Velocidade Furiosa: Hobbs & Shaw», o rol de filmes estrelados por Jason faturaram cerca de US$ 1,6 biliões. Não é por acaso, Sylvester Stallone, o midas da adrenalina, escolheu o britânico de 53 anos para ser o “herdeiro” do seu legado, escalando-o para estar a seu lado na cine-série “The Expendables”, 2010-2014), cuja receita ronda os US$ 802 milhões.

Desenvolvido sob o selo da MGM, «Um Homem Furioso» é uma releitura anglo-americana do thriller francês «Le convoyeur» (2004), de Nicolas Boukhrief. Statham assume o papel que era de Albert Dupontel, agora chamado de H. Repleto de destreza em lutas e no uso de armas de fogo, ele entra para uma equipe de seguranças responsável por proteger sacos de dinheiro. Mas H não entrou interessado em trabalho e, sim, numa vendetta pessoal, que envolvem tragédias pessoais. Mas ao se envolver no negócio de roubos milionários, ele acaba por se colocar em perigo.

Em geral, os filmes de Statham rompem com o mito do bom escuteiro e do politicamente correto, como se vê em «Parker» (2013), um dos seus melhores trabalhos, no qual contracena com Jennifer Lopez. Em 2018, Statham foi cabeça de cartaz no seu maior êxito comercial, até aqui: «Meg: Tubarão Gigante», que faturou US$ 530 milhões. Ali, ao enfrentar um tubarão gigantesco, ninguém acreditava que ele poderia usar suas proficiências de luta (ainda adolescente, ele estudou kung fu, karaté e kickboxing), mas… pobre do tubarão que o encarou. Ali, ele ainda empregou a sua experiência como campeão da seleção britânica de mergulho. São habilidades que transformam Statham no muso da pancadaria, o que se refina agora sob a fotografia de Alan Stewart para Ritchie, que torna «Um Homem Furioso» uma espécie de filme de samurai, cujo código de honra é esculpido num ethos de sangue.

Título original: Wrath of Man Realização: Guy Ritchie Elenco: Jason Statham, Holt McCallany, Josh Hartnett. Duração: 119 min. EUA/Reino Unido, 2021

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