A Metropolis teve acesso antecipado a «The Underground Railroad», a promissora série do Oscarizado Barry Jenkins para o Amazon Prime Video. Os 10 episódios ficam disponíveis hoje no streaming.
À hora que publicamos esta review, já estará disponível a aguardada série «The Underground Railroad» no Amazon Prime Video. A narrativa foi adquirida pelo streaming em 2017, na altura em que Barry Jenkins saía em estado de graça da cerimónia dos Óscares, depois da vitória surpreendente do seu «Moonlight». Uma vitória recordada não só pela temática forte, mas também pela gaffe grosseira de Faye Dunaway, que anunciou o vencedor errado à estatueta de Melhor Filme. Depois de uma longa-metragem concetual e impactante na mensagem, Jenkins atira-se agora de alma e coração à história sangrenta da escravatura nos Estados Unidos, tendo por base a obra The Underground Railroad, que valeu um Prémio Pulitzer a Colson Whitehead há quatro anos.
É difícil colocar em palavras aquilo que Barry Jenkins nos quis mostrar em imagens e em detalhes só percetíveis pela visão. «The Underground Railroad» é uma trama épica sobre a escravatura no século XIX, numa abordagem ampla e enriquecedora sobre um passado trágico, ainda que por via da ficção. Tal como acontece no livro que serve de inspiração, a “ferrovia subterrânea” é literal, com comboios que passam ocasionalmente e transportam os nossos protagonistas, esperamos, para a liberdade. Na realidade, a misteriosa underground railroad consistia numa rede (ilegal à data) que transportava escravos em fuga entre casas seguras e secretas, procurando fazê-los chegar a estados livres ou no Canadá. Para tal, contavam com a ajuda de abolicionistas e outros simpatizantes da causa, que se opunham à esmagadora maioria da sociedade, racista e violenta para com a população negra.
Cora (Thuso Mbedu) nasceu numa plantação de escravos da Georgia e foi abandonada pela mãe Mabel (Sheila Atim), que escapou e nunca mais deu sinais. Desafiada por Caesar (Aaron Pierre), junta-se a ele para uma jornada épica de fuga na ferrovia subterrânea, procurando a vida de liberdade que nunca conheceu. “Não há aqui mais nada do que sofrimento. Dor e sofrimento”, diz Caesar logo no primeiro episódio, tentando convencer Cora a fugir com ele.
No seu encalço segue o “caçador” de escravos Ridgeway (Joel Edgerton), cuja história de origem ajuda a traçar a imagem do escravizador e defensor da hierarquia de raças. Isto porque a série rejeita a ideia da influência apenas da educação e da sociedade em que se nasce, responsabilizando o indivíduo pelas suas escolhas e atitudes. Não só no que diz respeito à detestável personagem de Edgerton, mas também a outros “americanos de bem” que usam a Ciência como desculpa para o seu preconceito e violência psicológica.
Entre um espaço-tempo nem sempre totalmente claro, «The Underground Railroad» traça a imagem, demorada e pesada, de um país amarrado ao seu passado. Que, ainda assim, desperta consequências na contemporaneidade, com casos como o de George Floyd. Barry Jenkins, que realiza a totalidade dos episódios, não é, portanto, inocente na sua abordagem, assim como não foi o autor da obra original, e organiza uma narrativa complexa e introspetiva, que desassossega o espectador através do ambiente que cria, por exemplo com a banda sonora, e também com os acontecimentos que permite. Não só permite como mostra, com olhar direto e cru, para que o sofrimento não seja só conhecido como visto e replicado. As marcas do argumento transcendem a tela e incomodam. Incomodam porque a ficção retrata um passado demasiado cruel e que, por mais que seja distante, se mantém presente.
A natureza do ser humano mostra a sua pior, mas também a sua melhor face. A bondade para com os escravos em fuga, ou a recusa de os tratar como propriedade, são sinais de esperança. Efémera, é certo, mas que existe. Thuso Mbedu, natural da África do Sul, oferece uma interpretação que nos deixa sem chão, sobretudo quando o seu olhar quase perfura a lente e chega a este lado do ecrã. Porque, como sabemos, uma série por vezes não é apenas uma série. É uma mensagem, uma think piece elaborada sobre a história norte-americana e a própria história mundial, que mostra como homens e mulheres são tratados como animais; apesar de o seu sofrimento e os seus pensamentos serem partilhados com a audiência. E, mesmo quando isso não é feito de forma aproximada pelas câmaras, o impacto acaba por ser mesmo. Até porque o primeiro ato agressivo na trama é contra uma criança, e sem qualquer hesitação.
O paralelismo com As Viagens de Gulliver é visível até em termos internos, com Caesar a ler passagens da obra. Algo proibido e impensável, já que não seria suposto ele saber (ou poder) ler. O conhecimento pode ser uma arma, mas a verdade é que esta, tendencialmente, se vira contra os mais indefesos. Como um loop para o qual Cora e companhia não conseguem encontrar um fim. Discutem-se os seus destinos, mas eles nunca fazem parte da conversa; e os sinais de pré-Guerra Civil surgem a espaços. É tudo um jogo político e de homens, que decidem ou batalham pelos ideais que defendem, sem qualquer consideração pela “propriedade” que maltratam e assassinam a sangue-frio.
Do outro lado, Homer (Chase Dillon) é uma criança negra que defende os ideais do homem branco. A personagem é uma espécie de joker que, de forma demorada e pensada, conta também uma sub-linguagem do passado. Os destaques no elenco são vários, mas também Lily Rabe merece um apontamento especial pela sua Ethel, uma personagem que tem tudo para ser vilã, mas tem momentos de bondade, como que dando o sinal de que seria sempre possível. Mas, assim como uma luz ao fundo do túnel, tal não é sempre alcançável.
O elenco é bastante forte, contando com a participação, entre outros, de William Jackson Harper, Megan Boone, Peter Mullan, Lucius Baston, Damon Herriman, Marcus Gladney Jr., Calvin Leon Smith, Chukwudi Iwuji, Will Poulter e Devyn A. Tyler.