(Texto originalmente publicado na revista Metropolis nº 10 – Junho 2013 com o título “Star Trek: A história de um renascimento (com final feliz)”)

O renascimento era cenário que muitos não julgavam já possível. Em 2002 o décimo filme da série, «Star Trek: Nemesis», revelava um dos menos inspirados e menos bem sucedidos de todos os filmes criados em torno deste universo e colocava um ponto final ao medíocre arco de quatro títulos que haviam levado a chamada “next generation” aos grandes ecrãs. Ao mesmo tempo a dose sobredimensionada de ‘spin offs’ para os pequenos ecrãs começava a dar claros sinais de exaustão. Ao contrário da sua vida no cinema, a série «Star Trek: The Next Generation» fora brilhante em todos os sentidos (inclusivamente no departamento das audiências). «Star Trek: Deep Space Nine», que chegou na senda desse sucesso, tentou novos pontos de vista sob uma mesma mitologia e uma época, mudando as coordenadas geográficas (ou antes astronómicas, que a coisa é de dimensão galáctica). Mas depois chegaram casos menores como «Star Trek Voyager» e «Star Trek: Enterprise», nesta última a imaginação correndo já em modo de falta de ingredientes… Criado em finais dos anos 60 por Gene Roddenberry, com expressão televisiva original entre 1966 e 1969, «Star Trek» (série entre nós estreada um pouco mais tarde como «O Caminho das Estrelas») tornara-se, nos anos 70 e 80, num dos mais sólidos objetos de culto nascidos do universo da ficção científica. Mas em meados da década dos zeros, quando chega a ordem para cancelar o último ‘spin off’ «Star Trek: Enterprise», tudo parecia indicar que aquelas visões do futuro iam passar a ser memória de um passado definitivamente arrumado. Mas eis que entra em cena um nome e uma expressão. E, contra o que parecia ser uma lógica de desistência, o renascimento aconteceu.

O nome era o de J.J. Abrams e a expressão “reboot” (coisa familiar aos que lidam com computadores e que, simplesmente, poderíamos traduzir como tendo uma afinidade com aquela ideia do desligar e voltar a ligar a coisa, reiniciando o sistema)… E assim foi.

Em 2009, o realizador que era então sobretudo conhecido pela criação da série «Lost», apresentava em «Star Trek» uma nova abordagem a este universo. Regressava à tripulação “clássica” (mas nos seus dias de juventude), reconhecendo as características essenciais da personalidade de cada elemento, juntando contudo um elemento novo (e surpreendente) ao trocar o clima romântico entre o comandante Kirk e a oficial de comunicações Uhura por um romance entre Spock e a mesma especialista em escutar o que chega dos mais variados quadrantes do universo. O célebre beijo televisivo entre William Shatner (o Kirk original) e Nichelle Nichols (Uhura) fora na verdade o primeiro beijo inter-racial da história da ficção para TV, as suas ressonâncias tendo chegado aos mais variados confins da criação televisiva de então. Os tempos mudaram, as lutas pela igualdade de direitos do presente são outras, e o romance entre diferentes ganhava agora outra expressão.

Ao apresentar o seu segundo filme para este universo, J.J. Abrams é não só o autor de «Super 8» (um dos mais inteligentes filmes de aventuras dos últimos tempos) como o homem do leme da reativação de Star Wars… Contudo, em nada descuidou a dedicação ao espaço (e personagens) que ajudou a reativar. E faz de «Star Trek: Além da Escuridão», um filme não apenas ao nível do que nos mostrara em 2009 mas que, juntamente com o capítulo inicial estreado em 1979 sob realização de Robert Wise, mora merecidamente entre os melhores da história da vida cinematográfica deste gigantesco universo de ficção.

Tal como sucedera no “reboot” de 2009, o novo filme mostra os melhores ecos de um diálogo entre a vontade de criar algo de novo e o firme respeito (e prova de conhecimento) por uma mitologia que tem quase 50 anos de vida (e, consequentemente, uma legião de admiradores a não pode alienar). Se em «Star Trek» recuperara a tripulação e a própria figura mítica do Capitão Pike (que surgira no episódio The Cage, da série original), desta vez é retomada a personagem do vilão. Khan, com expressão original no episódio Space Seed (de 1967) e segunda vida no filme de 1982 «Star Trek: A Ira de Khan», de Nicholas Meyer (e em ambos os casos “vestido” pelo ator Ricardo Montalbán), conhece terceira vida agora com Benedict Cumberbatch, este na verdade concedendo-lhe uma dimensão decididamente mais assombrada e temerária, menos caricata que o malvado de casacos estranhos que os responsáveis de guarda roupa e caracterização haviam proposto nas suas duas primeiras vidas.

A essência da narrativa assenta sob uma história de vingança, na verdade com algumas variações face aos pressupostos lançados pelas duas vezes que o mesmo Khan já havia ameaçado a tripulação da Enterprise. O vilão mantém-se como uma figura geneticamente manipulada por humanos em tempos passados, mas o argumento junta à trama o valor acrescentado do carácter belicista de figuras de alta hierarquia (situação de resto bem explorada em «Star Trek: O Continente Desconhecido», filme de 1991 de Nicholas Meyer), a Terra aparecendo assim como alvo de uma potencial ameaça que Kirk e tripulação tentam defender.

Apesar de um notável trabalho de direção artística e de efeitos visuais, J.J. Abrams não afoga o filme em truques e malabarismos digitais apostando, por um lado, na solidez de uma narrativa com os devidos ingredientes de tensão e aventura (como começa a parecer ser a sua marca de identidade), concedendo também aos atores espaço para a afirmação das marcas de personalidade das suas personagens e terreno de manobra para que estabeleçam relacionamentos entre si. No final, acabamos com a certeza de que este universo afinal ainda tem um longo caminho pela sua frente… Nuno Galopim

Título original: Star Trek Into Darkness Realização: J.J. Abrams Elenco: Chris Pine, Zachary Quinto, Zoe Saldana, Benedict Cumberbatch, Leonard Nimoy, Karl Urban, Simon Pegg, John Cho, Anton Yelchin, Peter Weller. Duração: 132 min EUA, 2013

https://www.youtube.com/watch?v=t9WW9G24U-s
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