Saint Omer

SAINT OMER

SAINT OMER

Quando olhas durante muito tempo para um abismo, também o abismo olha para dentro de ti. Este aforismo de Nietzsche parece encaixar como uma luva na experiência da personagem de Rama (Kayije Kagame), uma das protagonistas de «Saint Omer». Professora universitária e escritora conceituada, Rama está a atravessar um período conturbado na sua vida pessoal, ou melhor, na sua vida interior. Ao deslocar-se a Saint-Omer para assistir ao julgamento de uma mulher de origem senegalesa que é acusada de ter morto a filha de 15 meses, Rama esperava encontrar material para o seu novo livro, uma adaptação moderna do mito de Medeia, contudo, um estranho sentimento de afinidade e horror toma conta de si.

O filme parte de um caso real, que remonta a 2016, em que Fabienne Kabou admite em tribunal ter abandonado a sua filha bebé numa praia para que ela fosse levada pela maré. Sem apresentar outra explicação, Kabou, que na altura estava a escrever uma tese de doutoramento sobre a obra do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein, alega ter sido vítima de bruxaria. Estes e outros detalhes são trazidos para a ficção, mostrando como o preconceito e a discriminação têm um lugar central neste processo. A dada altura, por exemplo, é chamada a testemunhar a professora da acusada que, sem sequer se aperceber do absurdo das suas declarações, se mostra incrédula no interesse de uma mulher africana pela obra de um filósofo austríaco – “porque não escolheu ela alguém mais próximo da sua cultura?”

Interpretada por Guslagie Malanda, a figura da acusada (que aqui se chama Laurence Coly) é trabalhada com o recurso a uma cenografia monocromática, planos longos e estáticos que nos permitem olhá-la durante muito tempo, enquanto ela quase desaparece e se mistura com a madeira envernizada do lugar de ré. Ela é um enigma, um abismo. Mas não é um monstro – senão um monstro humano. É disso que nos tenta convencer a advogada de defesa nas alegações finais que quase fecham o filme. Contudo, «Saint Omer» termina com um outro tabu que não a morte, nem o infanticídio, mas a complexidade da vida e das relações de sangue.

Título Original: Saint Omer Realização: Alice Diop Elenco: Kayije Kagame, Guslagie Malanda, Valérie Dréville Duração: 122 min. França, 2022

[Texto publicado originalmente na Revista Metropolis nº94, Junho 2023]