PRIMEIRO, MATARAM O MEU PAI

PRIMEIRO, MATARAM O MEU PAI

Loung Ung, a autora e coargumentista, e sobre quem versa a narrativa de «Primeiro, Mataram o Meu Pai», disse que apenas Angelina Jolie poderia fazer este filme, e não poderia estar mais certa. Não pela natureza técnica ou de outra espécie, mas porque será talvez a pessoa mais próxima emocionalmente do país e com vontade de contar o que o passado e a História quiseram esconder, como aliás tem feito na maioria dos filmes que escolhe dirigir. «Invencível» e «Na Terra de Sangue e Mel» são exemplo disso.

Sobre «Primeiro, Mataram o Meu Pai», produzido com o apoio da Netflix, a atriz e realizadora descreve-o como “uma carta de amor ao povo do Camboja”. Na verdade, não será tanto uma carta de amor, mas é certamente uma posição sobre algo que o mundo desconhece ou prefere esquecer, e que o povo que o viveu jamais poderá fazer desaparecer da sua memória. Jolie estabeleceu esta relação de amor com o país, há 16 anos, quando filmou «Lara Croft: Tomb Raider» em Angkor, e adotou o seu primeiro filho, Maddox Jolie-Pitt, que é produtor executivo deste filme.

Sendo ela uma defensora dos direitos humanos, esta era a oportunidade para dar voz e imagem à história de outra ativista, Loung Ung, sobrevivente do regime de Pol Pot e autora do livro que serve de base ao argumento. Estamos no Camboja de 1975, quando o regime comunista Khmer Vermelho assume o controlo da capital do país, Phnom Penh, e expulsa todas as famílias e residentes que vêm de um regime apoiado pelo governo americano. Pelos olhos da pequena Loung Ung (Sareum Srey Moch) assistimos à retirada da sua família para os campos de trabalho forçado no interior, onde não só conhecerão o horror do regime ditatorial, como colocarão à prova os seus laços familiares e a sua capacidade de resistência.

Com uma fotografia incrível do oscarizado Anthony Dod Mantle (por «Quem quer ser Bilionário»), responsável por filmes como «Rush – Duelo de Rivais» ou «127 horas», e apoiando-se em alguns planos aéreos, Jolie mostra uma realização luminosa sobre o que se passa nos campos de trabalho, controlados pelos Khmers Vermelhos, mas não poupa o espectador quando tem de expor o horror, o medo, a fome e o lado mais obscuro do ser humano. Com uma certa delicadeza, a realizadora não deixa de ser direta e explícita ao mostrar o que a protagonista viveu. Mas se por um lado isso corrobora o seu sentido de missão de relembrar o que aconteceu, por outro, cai no óbvio e no exagero ao servir-se dos sonhos da criança para mostrar aquilo que todos imaginam e percebem, e que não é necessário ver.

Num ritmo lento, vai seguindo passo a passo os momentos vividos por esta família de classe média que de um momento para o outro se vê num conflito que não é o seu e que não foi certamente o de mais de ¼ da população do Camboja que morreu nas mãos da ignorância deste regime. O espectador é levado a entrar numa demência descontrolada de um regime que mata os seus e que despreza qualquer tipo de sentimento.

Apostando num elenco local e na maioria sem qualquer experiência de representação, Angelina Jolie acerta na protagonista que nos guia pelo seu processo catártico pessoal sem proferir muitas palavras. Os seus olhos falam mais do que qualquer diálogo e é ela que salva grande parte do filme. Por vezes, alguns figurantes denunciam a passagem da câmara, e no meio do horror esboçam sorrisos cúmplices de quem está a viver uma primeira grande produção ocidental.

Ainda com algumas dificuldades em mostrar um argumento sólido, Jolie segue, no entanto, o seu coração e a sua intuição. Dá voz aos que o mundo silenciou ou ignorou e não tem medo de mostrar o seu país (EUA) no papel de invasor de uma nação que dizia respeitar enquanto neutro. No final, e como Angelina Jolie defende, «Primeiro, Mataram o Meu Pai» não é tanto um filme político, mas sim um filme comovente sobre a família, sobre a resiliência e a capacidade de sobrevivência. Por vezes, a maior força esconde-se nos corpos mais frágeis, mas que nem por isso deixam de fazer a diferença na superação dos maiores flagelos.

Título original: First They Killed My Father: A Daughter of Cambodia Remembers Realização: Angelina Jolie Elenco: Sareum Srey Moch, Phoeung Kompheak, Sveng Socheata. 140 min. EUA, 2017