Plangente como os grandes melodramas de apego (à moda Sirk) e salpicado por um misticismo digno do Pasolini de «O Evangelho Segundo São Mateus» (1964), «Piccolo corpo» encontra na atuação de Celeste Cescutti uma Estrela de Belém para se guiar pelo deserto simbólico do ceticismo. É do luto que brota a potência da vida, na dimensão uterina do apego ao que se foi, na história narrada por Laura Samani, diretora nascida em Trieste nos anos 1990. Ela e uma outra Laura também italiana (Laura Bispuri, de «Figlia Mia»), desponta no olhar dos caçadores de talentos das principais mostras de cinema do mundo. Em julho de 2021, Laura Samani brilhou na Semana da Crítica de Cannes embalando o seu «Piccolo Corpo», um estudo sobre afetos assolados pela perda.
É difícil não pensar em Roberto Rossellini… e, sobretudo, no Ermanno Olmi de «A Árvore dos Tamancos» (Palma de Ouro de 1978) diante dos planos idealizados por Laura, investindo no realismo para (paradoxalmente) dar sustância a uma fábula. O seu filme viaja no Tempo, até a Itália de 1900. Lá, o bebé da jovem Agata (papel da já citada Celeste Cescutti) nasce morto e condenado ao Limbo, sem receber as unções cristãs. Agata ouve falar de um lugar nas montanhas onde os bebés nado-mortos podem ser trazidos de volta à vida com apenas um sopro, para batizá-los e salvar a sua alma. Ela empreende uma viagem com o pequeno corpo da sua filha escondido numa caixa e encontra Linx (Ondina Quadri), uma pessoa solitária que se oferece para ajudá-la. Eles partem para uma aventura que permitirá a ambos se aproximarem de um milagre.
Não se trata de um filme religioso, sobre práticas místicas. O milagre que interessa à realizadora não é a manifestação do Sagrado e, sim, a ideia de Bem, que possa ser comum a homens e mulheres, ainda que representada numa ruptura com a decomposição histórica machista do patriarcado em Itália.
No guião escrito pela diretora, em parceria com Marco Borromei e Elisa Dondi, temos um painel dos conflitos sociais de uma Europa que viria a vivenciar duas grandes guerras. Fotografado por Mitja Ličen, a longa-metragem é uma delicada cartografia de sentimentos fraturados pela pobreza e pela fé.
Título original: Piccolo corpo Realização: Laura Samani Elenco: Celeste Cescutti, Ondina Quadri Duração: 89 min. 2021, Itália/França/Eslovénia, 2021
[Texto publicado originalmente na Revista Metropolis nº103, Fevereiro 2024]
https://www.youtube.com/watch?v=lW9uv4taYuA