Ao lermos a sinopse de «Pedágio» podemos pensar estar em pleno território de retórica panfletária ou mesmo um doloroso drama sobre as atribulações de um jovem que se vê enclausurado na sua sexualidade numa cidade industrial do Brasil. Podemos afirmar categoricamente que não poderíamos estar mais enganados. «Pedágio» é sinónimo de surpresa e descoberta. É um filme que sabe usar o humor para abordar – diria mesmo – derrubar dogmas mentecaptos expondo a hipocrisia e o absurdo do real. Penso que esta é a melhor forma para olhar um mundo cada vez bizarro onde a realidade se torna mais irreal do que a própria ficção.

A realizadora brasileira Carolina Markowicz sabe claramente o que faz e com os meios que tem à sua disposição fez maravilhas. É um processo que começa na escrita, através de um pensamento imerso em originalidade, antes de chegar à visão que temos no ecrã. As suas abordagens são fora da caixa para transmitir estados de alma e verdades do nosso mundo sem sequer ter um pingo de identidade panfletária. Pelo contrário, é um tratado de mestria e inteligência. Depois da concepção temos uma estrutura assente em colaboradores habituais e mesmo um feliz acaso na descoberta do actor português no papel de um pregador convicto, diria, cego na sua crença de libertar o diabo no corpo.

«Pedágio» tem duas estrelas reluzentes, cada uma com a sua trama mas que juntas são um belíssimo todo. Temos o actor Kauan Alvarenga no papel central de Tiquinho, o personagem de 17 anos tem uma atitude “não quero saber” com o seu orgulho de ser como é (leia-se, queer) e tem a sua mãe à perna. A mãe solteira é interpretada de forma verossímil por Maeve Jinkings, Suellen é a mãe coragem, aquela pessoa que faz e se desfaz pelo seu filho, Tiquinho é a razão da sua vida. Suellen é uma personagem como milhões de mães que vivem e pensam em função do amor do seu rebento. A opção de Suellen colocar o filho num tratamento de reorientação sexual é uma tábua de salvação. É uma espécie de processo de limpeza espiritual com um pastor (manhoso) que vai tirar a homossexualidade do corpo de Tiquinho. Segundo a colega de trabalho de Suellen e que canta no coro do pastor: até aos 17 anos o Diabo ocupa o corpo mas ao 18 passa a ser usucapião… (absolutamente hilariante). Mais tarde vamos descobrir que a colega foi possuída pelo espírito do adultério…

«Pedágio» consegue ter estas nuances entre o humor absurdo (que nos leva às lágrimas) a paredes meias com a crise existencial e de sobrevivência de uma mãe perante a incompreensão de lidar com as escolhas do filho. Esse desespero de Suellen, para arranjar o dinheiro para o “tratamento” de Tiquinho, levam-na para caminhos perigosos. O filme apresenta mais um ramo no seu crescimento narrativo que envolvem o trabalho da mãe no pedágio [portagem] e o envolvimento no mundo do crime.

O nosso último destaque vai para a cidade brasileira de Cubatão onde se desenrola a acção. Entre a natureza selvagem e a indústria pesada, o cenário anacrónico da cidade torna-se incrustado nesta narrativa tornando-a uma personagem distópica em si mesmo com muito por dizer e contar no mérito da visão de Carolina Markowicz e uma bela composição do director de fotografia Luis Armando Arteaga.

«Pedágio» é um filme completo, é rico nas suas diversas abordagens e se não fixa a um género, é um rasgo de singularidade. É uma produção luso-brasileira com uma realizadora que apenas realizou a sua segunda obra mas que tem um futuro muito promissor à sua frente.

Título original: Carolina Markowicz Realização: Carolina Markowicz Elenco: Kauan Alvarenga, Maeve Jinkings, Thomas Aquino, Isac Graça Duração: 102 min. Brasil/Portugal, 2023

[Texto publicado originalmente na Revista Metropolis nº107, Junho 2024]

https://www.youtube.com/watch?v=PioVwtFEVVA

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