Recentemente surgiu pelos forae da internet a expressão “OK Boomer”, um termo derrogatório que serve de resposta irónica e laminar às objecções ou críticas que a geração dos Baby Boomers (1946-64) fazem às que vieram depois. A irredutibilidade destas novas «verdades», que não permitem discussão e que recebem a crítica como uma ofensa digna de ostracismo ou cancelamento, é a matéria-prima da última obra do cineasta canadiano Denys Arcand, «Parece que estou a +» sic («The Testament»).
O filme leva-nos a acompanhar um arquivista septuagenário (Remy Girard) que vive numa casa de repouso na região do Quebeque. Uma região histórica e culturalmente muito particular pelas suas raízes francas numa área predominantemente anglo-saxã e que veio a tomar o lugar dos povos autóctones hoje denominados “primeiras nações”. Estas raízes francesas devem-se ao explorador Jacques Cartier que por aquelas terras abarcou, em meados do séc. XVI, fazendo o primeiro contacto com as tribos indígenas. Ora a paz da casa de repouso será quebrada justamente quando um grupo de jovens decide protestar contra uma pintura mural que representa o encontro do navegador com uma das tribos Iroquesas.
O sit-in irá prologar-se com os “activistas profissionais caucasianos” a exigir a remoção da pintura em nome de um abstracto colectivo de tribos. O caso vai escalando, propalado desmesuradamente pelos media convencionais, obrigando a uma célere resposta política. Mas neste ir e vir, o realizador expõe, de forma fina e ácida, o sensacionalismo e espetáculo instituídos dos Media e a hipocrisia, langue de bois e inépcia dos governantes. Contou o realizador, em entrevista, que se inspirou no episódio muito similar acontecido com uma pintura do Museu de História Natural Nova-Iorquino. Mas poderia ter sido o caricato caso que tivemos por cá com uma deputada a exigir a retirada da obra de Domingos Rebelo do Parlamento, confundindo emissários do Samorim de Calecute com escravos africanos… Esta discussão sobre a cancel culture torna-se num dos pontos mais interessantes do filme, nos diálogos entre o Director-Geral das Artes (Yves Jacques) e o Secretário de Estado da Cultura e Património, representado por Robert Lepage, um cineasta/dramaturgo que sentiu na pele esta pressão inquisitória com o cancelamento de duas das suas peças («SLĀV» e «Kanata») pela heresia de “apropriação cultural”. Mas nesta corrosiva crítica social, Arcand não cai na facilidade de tornar o filme numa acção de propaganda. O seu malho bate da esquerda à direita, de cima a baixo: dos nacionalistas aos ortoréxicos, das feministas ao funcionalismo público, dos ciclistas às questões de género. Mas esta crítica, por vezes paródica, não parece ser uma agressão nem uma auto-comiseração de alguém que está «a +». O autor consegue rir-se de si próprio e da geração da Révolution tranquille: os Baby Boomer do Quebeque. Numa das cenas aparece o seu próprio filho, que é transgénero, no papel de um artista de arte digital que quando questionado sobre o que pensa da destruição do mural responde: “Come on, this is a dead white man, who cares?” Ainda assim, este testamento deixa uma mensagem de esperança que se encontra por toda a sua obra cinematográfica. Arcand coloca sempre o dedo na ferida, não para a infectar, mas para nos mostrar que tem de ser curada.
Nuno Vaz de Moura
Título original: Realização: Denys Arcand Elenco: Rémy Girard, Sophie Lorain, Marie-Mai Bouchard Duração: 115 min. Canadá, 2023
https://www.youtube.com/watch?v=nYDl6KTcRSg&t=1s