«Para lá das colinas» confirma Cristian Mungiu como autor. Depois do extraordinário «Quatro meses, três semanas e dois dias» ter sido Palma de Ouro em Cannes, o mais recente filme do cineasta romeno arrematou, na edição do festival do ano passado, a distinção para melhor argumento e melhor actriz (repartida pelas protagonistas). Já em Quatro meses… as interpretações femininas eram perfeitas; já então o despojamento técnico e a crueza do olhar de Mungiu impuseram o seu cinema quando o dominante é cada vez mais um cinema de efeitos visuais fáceis e de manipulação emocional feita a partir de um receituário em que cabe cada vez menos a singularidade da sensibilidade de autor e cada vez mais a bitola da atenção fácil do espectador.
«Para lá das colinas» abre com um encontro. Um abraço, sentido, entre duas amigas. No abraço há tensão, porém, e não tanto alegria. Na Roménia pós-Ceausescu duas orfãs que cresceram juntas reencontram-se. O seu princípio de vida está marcado ainda pelos efeitos da ditadura – é preciso muito tempo, como sabemos por experiência própria, para que os efeitos esbatam “o medo de existir”. A explosiva e exigente Alina (Cristina Flutur) veio da Alemanha resgatar um diploma e a companhia da mulher que ama; Voichita (Cosmina Stratan) é noviça e alimentou a esperança da amiga de infância de que poderia partir, por um tempo, trabalhando com esta num cruzeiro.
No convento da zona rural onde Alina é temporariamente recebida, uma dúzia de freiras recebe a palavra de Deus por intermédio do padre a que chamam “paizinho”. É ele que as ouve em confissão e que lhes dá ordem de contrição ou jejum. É ele quem diz a Voichita que não há ir e vir. Ninguém vai e vem sem mudar. Ninguém abraça Cristo sem saber que nenhum amor mundano se lhe poderá sobrepôr. Nesta Igreja Ortodoxa – onde logo há entrada se avisa que nenhum crente de outra confissão religiosa aí poderá entrar – ressoa a ditadura.
Alina é um pequeno furacão que agita a vida da comunidade religiosa. Quando é hospitalizada, há indícios de que sofre de tuberculose e esquizofrenia. O médico receita os químicos necessários mas sobretudo recomenda descanso, que não seja sujeita a stress e Voichita convence o “paizinho” a receber Alina durante a convalescência. No ambiente rígido do convento não tarda, porém, que os síntomas se agravem. O receituário da madre e do padre é outro: impõe-se um exorcismo. A revelação que resulta da prática é a de Alina – tal como a Roménia – precisava de redenção mas pelo amor e através da vida plena. A sua violência não se acalma imobilizando-a, atando-a com cordas a uma cruz. A comunidade religiosa, cheia de boas intenções, não entende o mundo a que é suposto transmitir a palavra de Deus. Não se acalma a fúria do mundo, da Roménia do euro, com mordaças.
Na realização desta história inspirada em factos verídicos, Mungiu impõe-se como um extraordinário director de actrizes – são extraordinárias a compôr o amor que as dilacera, une e afasta -, tal como se impõe a qualidade e verdade das imagens que fixa, feitas de luz e sombra, naturais. A sua câmara não usa artifícios. Não é uma realidade maquilhada, composta, a que revela. O seu cinema de ficção vai mais longe na fixação de uma certa vivência na Roménia que o cinema documental conseguiria ir. É o cinema depurado de artifícios, cru, e que prende ao longo das duas e horas e meia que dura mais uma obra em que as mulheres estão, de novo, no centro do olhar de Mungiu. Maria do Carmo Piçarra
Título original: Dupa dealuri Realização: Cristian Mungiu Elenco: Cosmina Stratan, Cristina Flutur, Valeriu Andriuta. Duração: 152 min Roménia/França/Bélgica, 2012
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