O OLHARES do MEDITERRÂNEO – WOMEN’S FILM FESTIVAL regressa ao cinema São Jorge, em Lisboa, para a sua 8ª edição. Depois do ano atípico que foi 2020, o festival que privilegia o olhar feminino na realização de filmes, que têm como denominador comum a proximidade do Mediterrâneo, volta a receber o público em sessões presenciais, entre os dias 10 e 14 de novembro. A METROPOLIS falou com Sara David Lopes, da Direção do Festival, e não faltam motivos para não perder uma sessão deste fantástico festival.
Este ano, o festival faz uma abertura diferente, que passa pelo “passar do testemunho” da Festa do Cinema Italiano. Ou seja, a sessão de abertura do Olhares do Mediterrâneo – Women’s Film Festival será também a sessão de encerramento da Festa do Cinema Italiano. Como surgiu esta ideia?
Sara David Lopes: A ideia surge naturalmente por haver relações pessoais estreitas entre nós e a Festa do Cinema Italiano e porque objetivamente a ligação entre os nossos festivais é muito óbvia. A Festa encerra precisamente no mesmo dia em que nós iniciamos a nossa 8ª edição e começámos a pensar “e porque não juntar a vossa festa com a nossa e fazer uma sessão estrondosa”? Depois, foi uma questão de escolher um filme que articulasse os dois festivais. O filme escolhido para esta sessão duplamente festiva é de uma mulher italiana, Emma Dante, dramaturga, cineasta, que tem neste «As Irmãs Macaluso» um filme com um ambiente eminentemente mediterrânico, quer pela localização (na Sicília, em pleno Mediterrâneo), quer pela organização familiar tipicamente mediterrânica e as relações estreitas entre as famílias, com todas as suas vicissitudes. É um filme muito premiado, quer pela Italian National Syndicate of Film Journalists, quer pelo Festival de Veneza, onde recebeu vários prémios, nomeadamente o prémio de Melhor Filme e de Melhores Atrizes (pela prestação das cinco irmãs) e La Pellicola d’Oro, por melhor produção de filme italiano. Gostaríamos ainda de referir que esta relação com outros festivais se estende também ao Beirut International Women Film Festival (BIWFF), com quem conjuntamente programámos três curtas, premiadas na sua 4ª edição: «Amygdala», de Dana Abdessamad, e «A Day Off», de Leonardo Bassil, filmes vencedores, respetivamente, de uma menção honrosa e do prémio como melhor curta-metragem libanesa, e «The Present», de Farah Nabulsi (coprodução Palestina, Emirados Árabes Unidos), que, para além de ganhar o prémio de melhor curta-metragem no BIWFF, foi galardoado no BAFTA 2021 e está nomeado para os Óscares.

Nesta edição, as realizadoras portuguesas marcam presença em todas as secções do Festival. É bom termos realizadoras portuguesas a representar o nosso cinema em todas as vertentes deste festival, não?
Sara David Lopes: Temos sempre muito gosto em ter realizadoras portuguesas entre nós e temos sentido uma procura crescente das realizadoras nacionais relativamente ao nosso festival, o que muito nos alegra. E este ano temos ainda o enorme prazer de poder contar com a presença já confirmada de todos para apresentar os seus filmes e conversar com o público! A presença portuguesa destaca-se este ano com a première absoluta da longa-metragem documental «Elas Também Estiveram Lá», de Joana Craveiro. Além desta longa-metragem, com sete curtas em concurso, as realizadoras portuguesas marcam presença em todas as secções do Festival: «O Ofício da Ilusão», de Cláudia Varejão, «A Raiz da Margem», de Sílvia Coelho e Paulo Raposo, «Poéticas do Canto Polifónico», de Maria do Rosário Pestana, e «A Menina Parada», de Joana Toste, são apresentados na Competição Geral; «Nha Mila», de Denise Fernandes, e «Flor de Estufa», de Laís Andrade, entram na secção especial Travessias, sendo que o filme «Flor de Estufa» compete também na secção Começar a Olhar e é acompanhado por audiodescrição.

Por falar na estreia absoluta do documentário «Elas Também Estiveram Lá», de Joana Craveiro, uma longa-metragem sobre a visibilidade e a invisibilidade das mulheres nos processos históricos, tanto durante a ditadura de 1926-1974 como no processo revolucionário de 1974-1975?, quão importante é serem os primeiros a mostrar este filme?
Sara David Lopes: Efetivamente, temos esse enorme prazer. Não só porque o filme toca uma questão muito importante sobre essa visibilidade/invisibilidade feminina, que é transversal a todas as áreas da sociedade, e que, portanto, também acaba por se estender ao cinema e à dificuldade que as realizadoras têm em aceder aos fundos para fazer filmes, mas também porque isso representa para nós um enorme voto de confiança por parte da realizadora e da equipa de produção do filme. «Elas Também Estiveram Lá», marca a estreia de Joana Craveiro – atriz, dramaturga, encenadora e artista de performance – como realizadora cinematográfica. O filme baseia-se no espetáculo teatral homónimo e a incontornável importância do tema, tão pouco destacado em geral, levou-nos precisamente a programar uma mesa-redonda na sequência da projeção, no qual, além da realizadora, teremos a presença de Dima Mohammed da Universidade Nova, da Manuela Tavares da UMAR e de Clara Jorge, uma das muitas “filhas da clandestinidade”.

Além dessa temática, todos os anos existe um cuidado do Festival em trazer diversidade nas temáticas apresentadas, mesmo sobre o denominador comum, que é a realização ou produção feminina e a ligação ao Mediterrâneo. Este ano, existem alguns temas que vos tivessem chamado à atenção?
Sara David Lopes: Efetivamente, na nossa programação pretendemos espelhar a diversidade temática que nos chega. Nessa medida há sempre temas que se destacam. Por vezes, são coisas muito inesperadas. Houve um ano que havia vários filmes sobre minas, ou sobre voltar às origens… Este ano, tivemos também muitos filmes em que as protagonistas são mulheres. Mulheres que questionam e desafiam à realidade à sua volta, sem ficar quietas no lugar que a sociedade ou a contingência lhes quiseram definir. Desde as mulheres marroquinas que são abandonadas pelos maridos e procuram a sua liberdade através de duros e longos processos de divórcio dificultados por leis iníquas («Suspended Wives»), a mulheres vítimas de assédio no trabalho («Working Woman»), passando por mulheres que para garantir a sobrevivência da família se introduzem em meios laborais tipicamente dominados pelos homens («Tuk Tuk»). Temos ainda dois documentários sobre duas artistas performativas, cujos corpos se transformam em obras de arte que desafiam o patriarcado («Kubra» e «Esther Ferrer. Threads of Time»). E tivemos, como não podia deixar de ser, filmes relacionados com a pandemia. Contaremos, por exemplo, o confinamento visto pelos olhos dos adolescentes e filmado com telemóveis, um trabalho extraordinário que mostra o que significa para um adolescente viver confinado, num momento irrepetível da construção da sua identidade e autonomia («Teenage Lockdown Tales»). Mas não faltam filmes mais intimistas como «Sugar Cage», que nos mostra a vida parada e claustrofóbica dos pais da realizadora, em Damasco, ao longo de oito anos, na guerra na Síria, ou filmes como «The Bath», que aborda subtilmente o tema da pedofilia, ou ainda «Brother and Sister», que nos fala de uma relação tensa entre irmãos abandonados pela mãe. No plano das fronteiras, reais e simbólicas, e de prisões, com ou sem grades, temos ainda o documentário «First Year Out», que acompanha três ex-reclusos no difícil processo de adaptação à vida em liberdade. Há também filmes cómicos que nos levam a Marte («The End of Suffering (A Proposal)»), ou a conhecer os vizinhos («Neighbooor»), mas também temos filmes dolorosos como o fim de uma relação («In the Woods») ou o impacto inadvertido de uma explosão de um marco de correio com o filme «Holy Boom», da grega Maria Lafi, uma longa-metragem de ficção coproduzida por Grécia, Albânia e Chipre, em que na véspera da Páscoa ortodoxa, em Atenas, uma explosão acidental liga as histórias de quatro desconhecidos que tentam sobreviver à margem da legalidade, convergindo num final que não sendo feliz, não fecha a porta à esperança.

Existe um projeto de acessibilidade que permite que pessoas com deficiência visual desfrutem também de alguns destes filmes. Como têm sentido esta iniciativa? Neste caso, será a curta-metragem «Flor de Estufa», de Laís Andrade. Será uma iniciativa que esperam que venha a crescer noutras edições?
Sara David Lopes: Este é um projeto que iniciámos durante o ano passado, na 7ª edição, com toda uma sessão de curtas portuguesas acessíveis, fruto de uma parceria com a Sintagma e a especialista em AD Eliana Franco. Este ano, o projeto continua com a curta «Flor de Estufa», de Laís Andrade, que compete simultaneamente na secção Travessias e Começar a Olhar. É um filme esteticamente belo, sobre uma mulher estrangeira que trabalha nas estufas e que nos mostra um pouco desse mundo. É um projeto que nos merece muito carinho e gostávamos que o nosso festival fosse um espaço para a promoção da necessidade e da pertinência de passar a ter audiodescrição nos filmes e séries portugueses.

Voltamos este ano às mesas-redondas, masterclasses e workshops presenciais para adultos e crianças. Que boa notícia! Gostariam de destacar alguma das iniciativas desta edição?
Sara David Lopes: Entendemos que o Festival é também um espaço com uma responsabilidade no sentido de promover o cinema como um fator de mudança. Mudança de olhares, mudança de atitudes. É por isso que nos temos focado no workshop para professores e no workshop para as crianças. Nesta linha, reforçámos também este ano a programação para as escolas e temos o prazer de dizer que batemos todos os nossos recordes nesse campo, tendo recebido inscrições de 40 escolas e tido um aumento de cerca de 13% face às sessões presenciais de 2019. As sessões para as escolas, devidamente adaptadas a cada nível escolar, serão seis e abrangerão todos os níveis de ensino. Algumas delas contarão com a presença dos realizadores para dialogar com os alunos. As mesas redondas continuam também a ser um espaço de discussão e troca de ideias e, este ano, podemos contar com a presença de realizadoras dos filmes em todas as mesas redondas, uma situação que também não é habitual. Nas mesas redondas, falamos sobre Género e Família em Contextos Árabes, a partir de «Suspended Wifes», um filme que nos fala do limbo jurídico em que as mulheres marroquinas vivem quando os maridos as deixam. Na nossa habitual mesa-redonda Travessias exploramos Fronteiras Geográficas, Legais e Simbólicas: Limites Visíveis e Invisíveis, a partir dos filmes «Uranus», onde o céu parece ser a única fuga possível de Gaza, «The Present», onde vemos quão difícil pode ser comprar um frigorífico, «Tuk Tuk», que nos apresenta uma mulher que se vê obrigada a entrar num mundo masculino para ganhar a vida, e «Shakira», que nos apresenta uma jovem cigana empurrada para um mundo marginal. Por último, teremos a mesa-redonda Mulheres na Resistência e na Revolução, a partir do filme «Elas Também Estiveram Lá». Relativamente às masterclasses, teremos duas este ano. Mohamed Kheidr e Sherine Alaa, respetivamente realizador e produtora-executiva da curta-metragem «Tuk Tuk», apresentam a masterclass Visualize – Win the Prize. A dupla egípcia falará de como nasce um filme, da ideia inicial à pós-produção, até chegar aos festivais e à sua candidatura aos Óscares. Teremos ainda Sam Lahoud, docente de cinema e diretor do Beirut Women Film Festival, que nos apresenta via Zoom a masterclass Creative Storytelling in the Modern Era, sobre os desafios e problemáticas de contar histórias na era digital.

Nas vossas comunicações, ressalvam a necessidade de “repensar o mundo” e de “criar laços e quebrar fronteiras”?
Como sentem o mundo atual através de todos estes filmes e como podemos realmente vê-lo de outra forma através desta multiculturalidade?
Sara David Lopes: Os filmes são reflexo de realidades tão diversas e tão semelhantes ao mesmo tempo. É isso que nos maravilha e nos anima. Temos sentido de uma forma consistente que há uma ânsia de transmitir ao outro aquilo que se vive, de partilhar vivências e provocar uma empatia. Dito isto, programamos filmes que pretendem mostrar os vários mundos que, na verdade, são um só e, nessa medida, um fator de aproximação. É essa, em geral, a nossa ideia. Aos nossos olhos, é através de uma abertura de olhar que podemos mudar o mundo, abarcando-o sem preconceitos e com intencionalidade. Podemos levar isso a um plano mais ativista, mas por vezes, basta só ter noção dessa transversalidade global. Se conseguirmos alcançar esse objetivo junto do público que nos visita, sentimos satisfeito o nosso desejo de olhar o mundo de outra forma através dessa multiculturalidade.
