A resposta ao porquê de a Disney estar a fazer a reciclagem em série dos seus clássicos é do conhecimento de todos: lucro camuflado de nostalgia. Mas quando vemos surgir aquela que é uma das suas mais amadas produções – depois de meses e meses de marketing aguerrido – sob a forma de um clone digitalizado, com vários problemas na “computorização” dos sentimentos, a mesma pergunta ganha um novo ponto de gravidade. Se o live action serve para conceber uma versão em imagem real daquilo que vive nesse lugar específico da linguagem da animação, o que acontece ao que não tem equivalente? Imaginemos a dificuldade de traduzir um poema; para a resolver, este grande estúdio muniu-se de um vistoso sistema binário transformando um legado em fast-food visual para as novas gerações…

Até agora nunca tinha sido muito crítica em relação ao fenómeno, até porque a anterior experiência de Jon Favreau, «O Livro da Selva», pareceu-me ser do melhor que se fez nesta nova vaga da Disney. Por isso mesmo aguardava «O Rei Leão» – o clássico, de entre todos, a que estou mais ligada emocionalmente – com um misto de expectativa e medo. Acontece que a arte “viva” que Favreau tinha conseguido combinar com a sofisticação do CGI em «O Livro da Selva» é aqui somente um efeito mímico, e a dever pouco à designação de “vida” na grande tela. Procuramos no novo filme o encanto da cena do ensinamento de Mufasa sobre as estrelas/reis que nos vigiam (ou melhor, vigiam Simba), e sentimos a falta do vasto céu azul-escuro forte em contraste com a juba castanho-quente do Rei (reflexo do calor do seu coração de pai) onde o filho se deita; procuramos a pujança titânica do número musical de Scar, Be Prepared, e vemos uma recriação destemperada a servir apenas para sinalizar o acontecimento seguinte; procuramos também, por exemplo, a majestade da aparição do rosto de Mufasa no firmamento, e levamos com nuvens cinzentas – a verdadeira “mística” do digital.

O cinzento será, de resto, a cor que mais se retém deste «O Rei Leão» de Favreau. Ou seja, aquela indefinição que impede sentimentos garridos de qualquer ordem. As cores que faziam a animação crescer diante dos nossos olhos como uma pauta visual, entre a expressão sombria e a luminosa, tinham a sua própria vibração interior. Algo que aqui se converte num episódio musical, e numérico, do BBC Vida Selvagem, sem a orgânica de um imaginário. Entenda-se, há uma intensidade no cinema de animação – e neste caso no semblante dos animais – que não é transponível para um programa fotográfico, de alguma maneira asséptico. Faltam-lhe “germes” emocionais. Esses que se alojam no traço vivo de 1994 e forjam a beleza operática de um conto eterno.

E contudo, é preciso reconhecê-lo, a Disney continua na linha da frente da narrativa tecnológica: «O Rei Leão» é um exemplo perfeito da higienização visual capaz de recuperar, pela via mercantil, uma fábula sublime. O problema é que não basta o verniz da superfície… Por muita qualidade que tenha, estala rapidamente. Honre-se antes o soberano filme original.

Título original: The Lion King Realização: Jon Favreau Elenco (Vozes): James Earl Jones, Chiwetel Ejiofor, John Oliver, Beyoncé, Donald Glover, Seth Rogen, Alfre Woodard. Duração: 118 min. EUA, 2019

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