Os tempos são conturbados, mas falar de religião, e, concretamente, do judaísmo, nunca foi simples. A História está carregada de violência e de opressão. Em «O Rapto», Marco Bellocchio leva-nos até Bolonha em finais do século XIX, momento em que Itália ainda não era um Estado unificado e tinha regiões governadas pelo poder absoluto do Papa Pio IX. Neste contexto, o equilíbrio entre as comunidades cristãs e de judeus não convertidos era muito frágil, assente em repressão, jogos de bastidores, exibições públicas de subserviência e abuso de poder. O caso real em que se baseia o filme conta exactamente um episódio de abuso e prepotência por parte da Igreja Católica. Edgardo Mortara, um menino judeu de 7 anos, é retirado à sua família e enviado para Roma para um colégio interno onde é obrigado a renunciar à sua identidade cultural, étnica e religiosa e forçado a assimilar os dogmas do cristianismo.

Este caso, que se traduziu, na prática, num rapto, foi justificado pelo relato duvidoso de uma ama católica que estava ao serviço na casa de Edgardo quando ele, ainda bebé, terá adoecido gravemente. Com receio de que a criança pudesse vir a morrer e acabar presa no “limbo”, a ama terá baptizado o pequeno Edgardo, sem autorização ou sequer conhecimento dos seus pais, judeus convictos. Seis anos depois deste suposto baptismo, e em troco de dinheiro, a ama confessa o sucedido ao Padre Feletti (Fabrizio Gifuni), membro superior do Tribunal da Inquisição de Bolonha, que ordena que a criança, que afinal sobreviveu, seja retirada aos pais para que possa receber educação católica.

É um pouco difícil perceber a corrente lógica destes acontecimentos, mas a verdade é que eles se multiplicaram, e só em 2007 a Igreja Católica pôs um ponto final na questão do “limbo” com a publicação de um documento, redigido pela Comissão Teológica Internacional, em que se declarava convencida de que existem “sérias razões teológicas para crer que as crianças não baptizadas que morrem se salvarão e desfrutarão da visão de Deus”. Ora, durante séculos, esta preocupação com a salvação dos inocentes não baptizados causou enorme sofrimento e levou a decisões trágicas, como o caso que deu origem ao filme de Bellocchio. Foram muitas as vidas destruídas em nome da “caridade cristã”.

«O Rapto» põe em evidência a importância do respeito pelas crenças de cada um, uma conquista extremamente delicada e que a todo o momento pode ser posta em causa. É necessário discutir em liberdade e, também por isso, o cinema é um excelente ponto de partida e oportunidade de reflecção.

Título Original: Rapito Realização: Marco Bellocchio Elenco: Paolo Pierobon, Fausto Russo Alesi, Barbara Ronchi Duração: 134 min. Itália, 2023

Em exibição na Filmin a partir de 6 de março de 2025.

 

 

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