A obra do escritor José Saramago fornece novamente matéria-prima – para o cinema. O filme «O Homem Duplicado» («Enemy» no original), dirigido pelo canadiano Dennis Villeneuve, é a quarta adaptação cinematográfica de uma obra do autor português e propõe uma abordagem tensa e sombria da história atormentada de Adam, um professor universitário, (interpretado por Jack Gyllenhaal), que descobre um duplo seu num ambicioso ator secundário de cinema chamado Anthony (Gyllenhaal de novo). A história é contada em tom opressivo, mantendo essa ligação com o espírito da obra que José Saramago escreveu em 2002. As personagens também foram desenvolvidas em linha com o romance (Tertuliano Máximo Afonso e o sósia Daniel Santa Clara), apresentando um professor de história taciturno, que leva uma existência rotineira, e o seu duplo, um homem confiante e dinâmico, que procura desafiar o seu quotidiano.

A existência de alguém que é igual serve de gatilho à história e ajuda a desenvolver um conflito entre os dois homens, estabelecendo uma série de ramificações estranhas e que funcionam como abstrações de um real que nos é dado ver. Os duplos aproveitam a incrível semelhança e baralham as suas relações com as respetivas mulheres, ambas aparentemente infelizes (Mélanie Laurent interpreta a mulher ignorada por Adam e Sarah Gordon desempenha a esposa grávida e insegura que vive com Antonhy). O filme está carregado de pistas que permitem compreender a complexa relação entre estes dois homens (ou um homem só com duplicidade psicológica que é bem composto por Jake Gyllenhaal) e as duas mulheres. Revendo-as mentalmente, é difícil entender que estejamos perante um homem efetivamente duplicado – o tema da clonagem suscitava discussões apaixonantes quando Saramago escreveu a obra – mas antes na presença de um indivíduo aprisionado num casamento frustrante, e que experimenta libertar-se desse relacionamento através do seu alter ego, espicaçando o desejo que sente por outra mulher.

«O Homem Duplicado» propõe uma abordagem estimulante sobre a fidelidade afetiva e o desejo sexual, a rotina e a transgressão. Villeneuve criou um filme com uma ambiência fantástica que se alimenta da estranheza do quotidiano e da complexidade das relações entre as pessoas. O universo enigmático dos filmes de David Lynch tem sido uma citação recorrente para enquadrar este filme, mas parece-me mais interessante remeter para os labirintos mentais da obra de David Cronenberg. Em qualquer caso, é ajustado considerar que essa existência humana num contexto opressivo estabelece uma ligação muito forte com a escrita de José Saramago.

Título original: Enemy Realização: Denis Villeneuve Elenco: Jake Gyllenhaal, Mélanie Laurent, Sarah Gadon, Isabella Rossellini Duração: 91 min Espanha/França/Canadá, 2013

[Texto originalmente publicado na revista Metropolis nº21, Agosto 2014]

https://www.youtube.com/watch?v=aVvgt3jIUsc
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