Prestes a ser repaginado pela Amazon Prime, em forma de narrativa serializada, J. R. R. Tolkien (1892-1973) alertava: “Nunca ria de dragões vivos. Você pode encontrar as coisas que perdeu, mas nunca as que abandonou”. Esse alerta dele, que transpira de “O Hobbit” a “O Senhor dos Anéis”, tonificou os grandes espetáculos capa & espada da cultura pop. Incluamos aqueles que falam dos Vikings. «Valhalla Rising – Destino de Sangue» (2009) de Nicolas Winding Refn, era o melhor. Pelo menos, foi até «The Northman» chegar… e faturar US$ 60 milhões.
Celebrizados na cultura pop dos anos 2000 por séries («Vikings» e «Vikings: Valhalla») e comics (“Northlanders”, da DC Comics, e “O Poderoso Thor”, da Marvel), os guerreiros do mar egressos da Escandinávia, que singraram e sagraram o mundo de 793 d.C. a 1066 d.C., ficaram famosos no grande cinema de Hollywood por uma única longa-metragem de relevância histórica e difusão internacional, lançado em 1958, pelo cineasta Richard Fleischer (1916–2006). «Vikings, Os Conquistadores» custou caro para a sua época (US$ 3,5 milhões), mas faturou bastante (US$ 7 milhões), rendeu uma indicação ao Prémio do Sindicato dos Diretores dos EUA (DGA) para Fleischer e garantiu um prémio de melhor ator a Kirk Douglas (1916-2020) no Festival de San Sebastián, em Espanha. Apesar do prestígio dessa longa, aquele povo ficou circunscrito no imaginário do pop, até a segunda década dos anos 2000, pelas vias do rock (via viking metal, com bandas como Amon Amarth e Einhenjer) e por menções no comic “A Espada Selvagem de Conan”, onde são representados pela população dos Vanires. Refn fez bonito com Mads Mikkelsen em «Valhalla Rising». Mesmo sem dizer uma palavra nessa longa, aparecendo o tempo todo desfigurado, com uma cicatriz, Mikkelsen torna seu personagem, o furioso Um Olho, uma figura do qual não se desgruda um minuto na trama narrada por Refn. O cineasta ganhou prestígio (e o prémio de melhor direção em Cannes, em 2011) com «Drive», um marco da ação. Mas, antes, já havia alcançado reconhecimento por um par de filmes com Mikkelsen no elenco: «Pusher» (1996) e «Bleeder» (1999). No entanto, essa parceria alcançou seu apogeu com a história de Um Olho.
Mas, agora, 13 anos depois Robert Eggers, em seu exuberante e autoralíssimo «O Homem do Norte» («The Northman»), abre a Caixa de Pandora que reteve os feitos, as lendas e os demónios daqueles que rezam por Odin, o Deus dos Deuses. O novo filme de Robert Eggers é mais do que um thriller capa & espada, ainda que converse, de forma potente, com as convenções do género. Trata-se de um estudo antropológico sobre o modo de ser, de agir, de crer e de reagir de uma sociedade pagã, onde o empenho da direção se ressalta mais na reprodução de rituais (de fé e de guerra) do que na historiografia.
É algo próximo – ainda que mais radical, plasticamente, e menos realista – do soberbo «Conan, o Bárbaro», que completou 40 anos a 14 de maio, consagrado o legado do diretor John Milius. Há situações muito parecidas entre o cult de 1982 de Milius e o visceral ensaio sobre o rancor de Eggers, começando pela premissa (a morte em família, uma criança fugida e o treino de um guerreiro nas forjas do ódio) e pela sequência (brilhante) do encontro do anti-herói com um esqueleto ancestral (e mágico) que guarda uma espada. O guerreiro de Milius, Conan, era um Schwaarzenegger balbuciante, de bíceps furunculares e de muito carisma. Já o tal “homem do norte” de Eggers, Amleth (vivido por um Alexander Skarsgård sempre besuntado de sangue, no auge da sua vontade de potência como ator), é um nobre caído, o filho de um rei morto. E que rei estonteante é Aurvandil, senhor de muitas batalhas, fiel à mitologia dos corvos, vivido por um grisalho Ethan Hawke! Cada passo da trama escrita pelo escritor islandês Sigurjon B. Sigurdsson (ou apenas Sjón) e Eggers é guiada pela presença ausente de Aurvandil, o que justifica a escolha de um astro da envergadura de Hawke.
A partir do assassinato dele pela lâmina de seu irmão, Fjölnir (papel dado a um contido Claes Bang, astro de «O Quadrado»), Eggers exercita a sua autoralidade, dialogando com processos que trouxe de «A Bruxa» (pelo qual ganhou o prémio de Melhor Direção em Sundance, em 2015) e de «O Farol» (Prémio da Crítica da Quinzena de Cannes em 2019). O seu traço identitário como diretor-autor está na reflexão da loucura e do excesso que circunda o povoamento de regiões vetorizadas pelo isolamento e por culturas opressivas, seja o fervor cristão, seja o código dos marujos, seja a cultura da barbárie.
Mas, aferrado aos debates sobre equidade de géneros dos novos tempos, ele tem a sabedoria de dar às mulheres um espaço de honra em narrativas movidas pela fúria dos homens, como se vê na figura da escravizada Olga, que extrai de Anya Taylor-Joy uma atuação transbordante, ou na rainha encarnada por uma Nicole Kidman endemoniada. E ainda tem Björk, numa rápida aparição como clériga dos deuses nórdicos. Tudo isso cozido em fervura máxima na panela de pressão da fotografia abafada (ocre) de Jarin Blaschke. É um espetáculo de vísceras e de rezas, que atesta Skarsgård como um dos mais perseverantes atores de nosso tempo.
Título Original: Realização: Robert Eggers Elenco: Alexander Skarsgård, Nicole Kidman, Claes Bang, Willem Dafoe, Anya Taylor-Joy, Ethan Hawke
https://www.youtube.com/watch?v=oMSdFM12hOw