Além de ser conhecido como um dos mais temíveis ditadores do século XX, Augusto Pinochet é, afinal, também um vampiro? Eis a premissa de «O Conde», uma sátira com uma premissa invulgar e que se destaca, justamente, pela sua originalidade. Na história, Pinochet (Jaime Vadell) é um vampiro com mais de 250 anos e que decide que quer morrer de uma vez por todas quando considera que o seu ingrato país o acusa injustamente. Pinochet liderou um golpe militar contra o presidente Salvador Allende em 1973, tendo governado o Chile até 1990, numa ditadura marcada por perseguição violenta aos opositores, em que milhares de pessoas foram mortas e torturadas. Em 1998, foi preso por investigações que indicavam que tinham desviado dinheiro do Chile.
Pablo Larraín é, também ele, chileno e tem dedicado parte da sua obra a dissecar o impacto e a dor que a ditadura provocou no seu povo, bem como as marcas que deixou, patente na trilogia «Tony Manero» (2008), «Post Mortem» (2010) e «Não» (2012). Mais recentemente, focou-se nos retratos biográficos de figuras femininas marcantes, com «Jackie» (2016) e «Spencer» (2023), pelo que «El Conde» é um regresso às origens e, agora, Larraín foca-se, pela primeira vez, diretamente em Pinochet, mas com uma abordagem muito diferente do que lhe é habitual e particularmente inspiradora.
«O Conde» é um filme arriscado, que exige uma segurança e maturidade que Larraín comprova já ter atingido. Através de uma narrativa que também assina, juntamente com Guillermo Calderón, o cineasta usa a metáfora para retratar uma figura que tanto lhe diz, explorando ao máximo a própria premissa, que é desenvolvida de forma consistente e que se vai assumindo contornos cada vez mais surpreendentes. O elenco é bem escolhido e consegue traduzir, de forma espirituosa, as subtilezas e a complexidade do argumento.
A soturna e belíssima fotografia de Edward Lachman eleva o filme a outro patamar e a escolha pelo preto e branco é certeira, exacerbando o carácter gótico da história que Larraín pretende imprimir, marcada pela brutalidade, o desprezo pelo outro e a total ausência de escrúpulos. O tom satírico é sagaz, mas é permanente um sabor amargo ao longo de toda a obra – o mesmo que a narradora diz que Pinochet sente quando morde as pessoas da América do Sul.
Em «O Conde», Larraín transforma Pinochet num monstro real, personificando o monstro da história do seu país, mas, mais do que isso, o monstro das suas histórias, cuja a marca da mordida continua bem presente. É, porventura, o filme mais arrojado da sua obra e prova que há muitas (e engenhosas) formas de contar uma história.
Título original: El Conde Realização: Pablo Larraín Elenco: Jaime Vadell, Gloria Münchmeyer, Alfredo Castro, Paula Luchsinger Duração: 110 min Chile, 2023
https://www.youtube.com/watch?v=YGvX7ma7Xnk