Temos «Death Wish – A Vingança» na HBO Portugal, na maratona audiovisual da 40ena, agora com Bruce Willis como protagonista, e com Eli Roth (o Urso Judeu de «Sacanas sem Lei») como realizador. Desde as sequências iniciais, o filme espirra sangue, o que nos leva a uma genealogia de seu herói, o arquiteto transformado em vigilante Paul Kersey, agora um médico plantonista. Por conta da sua tonalidade fascista, na defesa de que “bandido bom é bandido morto”, no original, Death Wish, de 1974, nunca é enquadrado entre os grandes exercícios de representação das transformações sociais feitas pelo cinema americano dos anos 1970 – época na qual esta produção de US$ 3 milhões rendeu US$ 22 milhões na venda de ingressos.
Embora haja um hype vintage em torno do seu astro, Charles Bronson (1921-2003), este nunca alcançou o mesmo prestígio do que outros tough guys da época, como Clint Eastwood, por exemplo. E o diretor desta pérola realista sobre a justiça popular, o inglês Michael Winner (1935-2013), tão pouco é lembrado como deveria, visto o quão virtuoso era na elaboração de planos. Naquele momento do que se chamava Geração Easy Rider (referência à leva de jovens responsáveis por uma renovação de linguagem e de narrativa das telas dos EUA a partir do encaixe político e do desafio aos tabus morais), com Coppola, Scorsese, De Palma e mais uma leva de transgressores apostando à esquerda dos signos de americanismo, Winner era uma espécie de signo de contrarreforma, de aposta no conservadorismo. Esse debate sobre a reação conservadora de Hollywood retorna agora, nestes tempos de culto a heroínas, na caça às bruxas do machismo nas tramas sobre homens, e na fratura dos símbolos clássicos do masculino. Não é por acaso que foi escolhido Willis, ator que ofereceu US$ 1 milhão como recompensa a quem lhe trouxesse a cabeça de Osama Bin Laden nos tempos do 11 de Setembro.
Em sua reencarnação, Kersey tem uma rotina pesada de atendimentos no hospital. Num plantão, ele recebe a notícia que sua mulher (Elisabeth Sue) foi assassinada no decurso de um assalto à sua residência. A filha do casal saiu gravemente ferida. Revoltado com o crime, ele procura a justiça, percebendo que a brutalidade que assombrou seu lar pode ter sido fruto de um esquema do seu irmão mais velho (Vincent D’Onofrio).
Embora tenha perdido a chance de reinventar a sua carreira cinematográfica ao ficar de fora de «Café Society», de Woody Allen, do qual desistiu por questões de agenda, Willis voltou a ser o centro das atenções da indústria cultural dos EUA só que em outro terreno: o teatro. Desde 2015, ele mobiliza o palco do Broadhurst Theatre, na Broadway, ao lado de Laurie Meatcalf, numa encenação de Misery, versão teatral do romance de Stephen King já filmado nos anos 1990 e exibido nas nossas telas com o título «Misery – O Capítulo Final». Foi o filme pelo qual Kathy Bates ganhou seu merecido Oscar de melhor atriz. É a história da fã obcecada, Annie Wilkes, que detém um escritor trancado na sua casa a fim de obrigá-lo a escrever mais um tomo da saga da sua personagem favorita, Misery Chastain, sem a qual ela não pode viver. Em horas de agonia, com a perna quebrada, o autor Paul Sheldon não vê outra alternativa se não embarcar na manipulação da sua torturadora e preencher todos as lacunas afetivas que ela impõe. Willis já fizera teatro no passado, tendo chamado a atenção dos olheiros pelo seu desempenho em Loucos de Amor, de Sam Shepard, e por seu trabalho como gaiteiro em shows de blues. Mas agora é uma imersão profissional na Meca das artes cénicas, para provar que ainda pode tirar o ferrugem do seu arsenal dramático, mesmo que, no cinema, ele não acerte há alguns anos.
Como sua carreira anda em baixa há anos, o regresso de Kersey não teve o mesmo impacto comercial que o personagem teve nos anos 1970 e 80. O vigilantismo de Kersey – um anti-herói criado na literatura por Brian Garfield, em 1972 – enquadra-se bem na filosofia da Era Trump. Na trama do filme de Winner, a família de Kersey é atacada por agressores e ele não é capaz de defender sua mulher e filha. A Justiça faz vista grossa para seu pleito pela Lei. Sem paz no coração, ele compra uma arma e sai pelas ruas, em busca dos homens que macularam seu quotidiano de perdas e danos. No caminho, mata o primeiro ladrão que aparece. O mesmo enredo se dá agora, na versão mais pop de Roth, um diretor e ator apadrinhado por Tarantino. Mas será que essa necessidade de reação pode transcender os ditames da direita radical?