Depois de «Once- Num Mesmo Tom» e agora este «Num Outro Tom», percebe-se porque razão os U2 deram autorização para o compatriota John Carney tomar as rédeas do projeto Sign Street, um musical com as canções da banda e a alma irlandesa. Aos poucos, este cineasta de Dublin conseguiu convencer meio mundo da sua articulada aura de contador de histórias com canções. Apetece dizer, com canções e gente lá dentro. Se em «Once», estava lá também o sortilégio celta, aqui a alma é toda de Nova Iorque num filme doce e sem medo das grandes emoções. Carney tem qualquer coisa que eleva a fruição dramática a um ponto de exposição confessional. E o impressionante é esse equilíbrio entre a naturalidade das personagens e o ajuste com a passagem da música. É como se ele não quisesse fazer à musical, mas sem nunca perder o ritmo da música para chegar perto do coração das personagens. Pois bem, este «Num Outro Tom» (no original «Begin Again» que antes chegou a estar batizado de “Can a Song Save Your Life”?), além de ser uma história de recomeços, tem tudo para entrar no top do sub-género “carta de Amor a Nova Iorque”. Neste caso, uma Nova Iorque que exala música e com recantos e paisagens que não costumam aparecer nos filmes nem nos guias turísticos. Para fruir esta carta de amor humanista, há uma união entre um quarentão em crise pessoal, que está num processo de separação da mulher e em vias de sair da editora de sucesso que criou, e uma jovem cantautora desconhecida e prestes a desistir das canções depois do namorado famoso a trair. Essa união visa criar um disco gravado nos mais variados locais de Nova Iorque. E esta é uma cidade real, com suor, barulhos e ruídos. Mas também com uma musicalidade que vem do trânsito, das ruas. Uma cidade da música.
Carney tem também a proeza de filmar isto tudo com uma vitalidade tremenda. O filme nunca vai abaixo e, às duas por três, já estamos apaixonados por todas as personagens, mesmo as mais secundarias (veja-se o prodígio da personagem de Catherine Keener). Mérito de tanta empatia? Talvez o argumento (de Carney) nunca cair no deslumbramento melómano ( a narrativa nunca empastela), embora «Num Outro Tom» seja realmente um paraíso para melómanos, uma obra que descobre o coração da paixão da música. Nota-se que Carney é fã a sério de música não formatada. Depois, consegue com os atores um jogo de improviso que é tão naturalista como sofisticado. Parece caído do céu. Os diálogos entre Mark Ruffalo e Keira Knightley não têm uma nota falsa!
E se a credibilidade sentimental não atraiçoa as intenções do filme, o que dizer da força romântica genuína? Cinismos à parte, é complicado não ficar no mesmo tom. Este é daqueles casos que o espetador está condenado a deixar-se ir. Além de saborear o “vibe” do filme encontrará a prova de que a música no cinema ainda nos pode emocionar. Este é um feel-good movie capaz de emocionar uma pedra…
Título original: Begin Again Realização: John Carney Elenco: Keira Knightley, Mark Ruffalo, Adam Levine, Hailee Steinfeld, James Corden, Catherine Keener Duração: 104 min EUA, 2013
[Texto originalmente publicado na revista Metropolis nº21, Setembro 2014]
https://www.youtube.com/watch?v=zqRL2dY5-us