O nevoeiro não é só condensação de água. O medo condensado também pode transformar em nevoeiro. A fotografia realista, crua, do segundo filme de ficção do antigo documentarista ucraniano Sergei Loznitsa, corta as várias camadas dos vários géneros possíveis de nevoeiro e mostra como este é espesso.
«No Nevoeiro» é um filme sobre o horror do nazismo, sobre o colaboracionismo forjado pela força, pelo medo, pela cobardia e mesmo pelo oportunismo mas também é um filme sobre a resistência e a dignidade que pode existir, condensada, num homem. É também, ele próprio, um filme de resistência. Resiste aos efeitos fáceis, confronta o espectador com o horror sem nunca estilizá-lo, sem exibi-lo. «No Nevoeiro» é um filme cuidado, composto, com olhar, e sem exibicionismo, assente-se já.
O filme abre com uma sequência em que o exército nazi que ocupa a União Soviética, auxiliado pelas autoridades locais colaboracionistas, executa um grupo de camponeses que sabotaram a linha do comboio. Outros camponeses escondem-se no mato. Resistem, esperam o momento justo para a vingança. Também eles executam os camponeses que colaboram.
Trabalhador na via férrea, Sushenya, rosto tenso e digno, já espera a visita dos seus executores. Procura, fragilmente, evocar a sua inocência. Sim, foi preso e libertado. Não sabe porque foi libertado mas, assegura, não traiu. Perdeu a esperança que acreditem em si. A mulher e o filho ainda o agarram à vida mas ele sabe que todas as evidências estão contra si. Pega na pá e segue os seus executores até ao local onde deve ser abatido e ficar sepultado. Porque se submete docilmente? Será por patriotismo? Será culpa por ter tentado dissuadir os sabotadores alertando-os para as represálias nazis sobre a comunidade?
Uma reviravolta dá seguimento à via crucis de Sushenya. O camponês, outrora amigo da família, tornado verdugo é ferido no mato e torna-se a cruz que Sushenya carrega às costas, pela floresta, para cumprir o trajecto sadicamente desenhado por um comandante nazi.
A floresta (impossível não lembrar Tolstoi e Guerra e Paz) coada de nevoeiro é o espaço onde tem que cumprir um ordálio – e o espectador com ele. Maria do Carmo Piçarra
Título original: V tumane Realização: Sergei Loznitsa Elenco: Sergei Kolesov, Vladimir Svirskiy, Vladislav Abashin. Duração: 127 min Alemanha/Holanda/Rússia/Latvia/Bielorrússia, 2012
[Texto originalmente publicado na revista Metropolis nº11, Julho/Agosto 2013]
https://www.youtube.com/watch?v=gS6CnNInivw