Sempre que o politicamente correto corrói um género dramático, ele se reestrutura com um plano B, pelo excesso, como aconteceu com os western´s na sua transformação em spaghetti. Mais patrulhado dos filões, o cinema de ação atravessou os anos 2010 numa mutação similar à que se passou com o western, indo para uma instância de histeria e de taquicardia onde toda sua brutalidade é exponenciada a uma instância onde moral alguma parece refrear a violência física, criando uma narrativa mais cinemática, de crueldade gráfica. É o que se viu em «John Wick» (2014), uma obra-prima no emprego de todas as cartilhas do thriller que transformou o produtor e ao duplo David Leitch numa espécie de Midas. Seu modo poliédrico de enquadrar uma luta ou um tiroteio – isto é, sua habilidade de retratar uma luta em ângulos diversos – tornou-se uma marca, autoralíssima, que, mesmo indigesta para muitos, tem um valor mais do que singular de desafiar pudores. O trabalho que começou embrionário na franquia com Keanu Reeves estendeu-se para outros projetos, como o magnífico «Ninguém» («Nobody»), capaz de testar o carisma do argumentista, diretor de TV e ator Bob Odenkirk.
Rotinado na representação de criminosos depois de sua participação em “Breaking Bad”, ele ganhou status de protagonista na série «Better Call Saul», exibida na Berlinale por conta da sua sofisticada gramática de argumento. Mas o arquétipo do abutre usurário, de terninho, que fez sua fama na TV e no streaming, caem por terra neste ensaio nietzschiano do diretor russo Ilya Naishuller sobre “o lobo do homem” que mora no coração do mais cordial dos sujeitos. Hutch Mansell, gerente de uma metalurgia, é um carvão bruto que se torna diamante quando o cansaço do seu dia a dia de invisibilidades clama pelo sono dos justos na forma da revanche. Resguardado do seu instinto predatório, talhado ao longo de um passado de bestialidades que optou por deixar pra trás, ele escolheu uma casca frágil para proteger toda a ferocidade de um miolo indomável. O desgaste de um casamento e de uma paternidade que se burocratizaram em nome dos códigos da rotina alimentam ainda mais a vontade de potência do seu devir bandido, adormecido à força de um soporífero cuja química parece vencida. Quando um assalto à sua casa fere a monotonia em que se escudava, ele decide ir atrás dos ladrões e, no meio do caminho, descarregar tudo o que ficou encapsulado. Uma vez que Mansell parte para a guerra, a edição de William Yeh e Evan Schiff aposta num fraseado curto, de arranjo sinuoso, onde uma pancadaria num autocarro é narrada em múltiplos cortes, acelerando o seu ritmo sem tirar a compreensão de cada plano. Essa velocidade traduz o qual veloz é o contágio do Dr. Jekyll Mansell por seu lado Mr. Hyde.
Exultando carisma, Odenkirk transforma um cordeiro em ave de rapina sem desafiar a credibilidade dessa conversão, resgatando a ideia (cada vez mais banida) do pai protetor que, ferido em sua honra, reage. Essa reação promove uma discussão de valores ancestrais da ideia do (anti-)heroísmo, onde o sacrifício é o estandarte da dramaturgia. Mansell é um anti-herói que rejeitou sua sina para poder amar. Mas, como dizia o dramaturgo Jean Anouilh, existe o amor e existe a vida, sua inimiga. E essa inimizade feroz nem sempre respeita o que a vontade do politicamente correto. E nada mais incorreto do que o ancião sábio vivido por Christopher Lloyd, que impulsiona Mansell a ser quem de facto é.
Título original: Nobody Realização: Ilya Naishuller Elenco: Bob Odenkirk, Aleksey Serebryakov, Connie Nielsen. Duração: 92 min. EUA/Japão, 2021