Numa altura em que a corrida aos Óscares está ao rubro e em que o foco está apontado para o musical «La La Land» que conseguiu, inclusive, captar a empatia dos fãs mais céticos, é delicada a situação de qualquer outro filme que está igualmente na passadeira vermelha, a sentir os flashes a dispararem noutra direção. É aí que está «Moonlight», de consciência tranquila, sem arrogância ou falsa modéstia. Sabe que o que tiver de ser seu será e sabe também que, apesar de não estar em campanha, já muitos corações foram tocados e isso basta-lhe.
Dito isto, aquela que é a segunda longa-metragem do realizador Barry Jenkins, apesar da sua humildade e discrição na corrida, já venceu o Globo de Ouro para Melhor Filme Dramático e está a competir em oito das categorias mais importantes das estatuetas douradas, entre elas, a de Melhor Filme, Melhor Ator e Atriz Secundários, Melhor Realizador e Melhor Argumento Adaptado. Palpites de lado, «Moonlight» é um dos filmes do ano e tirar-lhe essa categoria seria, no mínimo, injusto.
«Moonlight» é vencedor na forma simples como trata algo complexo. É hipnotizante na contenção dos atores que dão vida a Chiron nas suas várias etapas de vida. É difícil de explicar porque se entranha e nos convida a ficar e a seguir os seus passos quando não sabemos para onde vamos, mas simplesmente sabemos que queremos ficar.
A ação decorre num bairro perigoso de Miami, Liberty City, no qual vingam os traficantes e onde a raça negra parece estar confinada a remotas oportunidades na sociedade. Aí, conhecemos Chiron (Alex R. Hibbert), que todos tratam por Little, com 10 anos, perdido de si e inserido numa comunidade em que poucos o entendem, mas todos têm uma palavra a dizer sobre a sua orientação sexual, algo que nem o próprio ainda descobriu. Vítima de bullying e perseguições na escola, encontra segurança e o conforto de um “lar” na vida do traficante Juan (Mahershala Ali) e da sua esposa Teresa (Janelle Monáe). Anos mais tarde, já na adolescência, a sua personalidade contida apenas se apurou e os seus olhos continuam perdidos no vazio de um lar desfragmentado, que divide com uma mãe toxicodependente. Agora Chiron (Ashton Sanders), o jovem mantém-se à parte e alienado de todos aqueles que pensam saber o que é “normal”, mas um evento específico (um dos mais marcantes do filme) mudará a sua vida para sempre. No seu estado adulto, Chiron (Trevante Rhodes) já não é Little nem Chiron, é Black, um homem feito, musculado, enfeitado com fios e uma dentadura de ouro, um verdadeiro dealer de rua.
Apesar de se ter transformado no produto corrompido da sociedade, Chiron continua a denunciar no olhar a sua fragilidade comovente, que nos faz sentir vontade de o apoiar em qualquer uma das suas escolhas. Chiron tem um pouco de todos os que são constantemente desafiados a aceitar quem são e que sobrevivem num mundo que parece ter perdido a fé na humanidade.
«Moonlight» é o casamento perfeito entre a peça de Tarell Alvin McCraney e a visão de Barry Jenkins que, apesar de não se conhecerem antes, cresceram no mesmo bairro, partilhando as mesmas raízes e os mesmos dramas parentais (as mães de ambos sofreram de problemas de toxicodependência e contraíram SIDA). Depois de «Medicine for Melancholy», o realizador vai de novo às minorias, desta vez para uma problemática raramente vista em cinema: a homossexualidade numa comunidade tão intransigente como a dos Afro-Americanos confinados aos bairros problemáticos, em que a virilidade é uma arma.
Apostando num elenco com ligação a esta realidade, Jenkins acerta em cheio. Apesar de existirem três épocas, todos os atores são diferentes, mas existe algo de Chiron em todos eles e que o público consegue reconhecer, seja o olhar despido de maldade, seja a doçura escondida na existência amarga, seja a necessidade de compaixão da sua personalidade contida e implosiva.
A breve presença de Mahershala Ali justifica a sua nomeação de Melhor Ator Secundário, pois é no suporte dele que reconhecemos o que gostaríamos de fazer por Chiron e é a quem somos gratos por lhe dar as bases que um pai deveria dar. Naomie Harris está igualmente nomeada pelo seu papel da mãe toxicodependente que não consegue salvar Chiron e, apesar de já ter dado provas do seu talento, existe algo de sobrecarregado na personagem que já não é novo.
Um último apontamento para a cinematografia de James Laxton que, em tom metafórico, abusa da luz pálida do dia, como se a vida fosse algo sem grandes distrações, seguindo apenas o seu rumo. Mas é na luz da noite e da lua que a verdadeira essência vem ao de cima.
Produzido por Brad Pitt, «Moonlight» é sobre a falta de oportunidades e sobre a forma como continuamos a esconder a verdadeira identidade, com medo de não cabermos no molde que a sociedade definiu. É sobre a autodescoberta, sobre a (falta de) confiança em nós e no mundo, sobre a falta de tolerância e compaixão; é sobre a ausência de aceitação e o enaltecer de dogmas e crenças limitadoras de uma sociedade que resiste em aceitar a diferença. Na verdade, é precisamente na diferença que está a unicidade de cada um e é isso que nos torna na pequena, mas essencial, peça da engrenagem que é a vida.
Título original: Moonlight Realização: Barry Jenkins Elenco: Mahershala Ali, Naomie Harris, Trevante Rhodes, Janelle Monáe. Duração: 111 min. EUA, 2016
[Crítica originalmente publicada na revista Metropolis nº46, Fevereiro 2017]