Algoritmos formulaicos da indústria audiovisual não se aplicam ao que «Matrix Ressurrections» investiga num processo de autocrítica do pop. É um divã freudiano disfarçado de aventura sci-fi, com Neil Patrick Harris pra redesenhar conceitos de vilania. Um divã que se processa como um RPG.
Narrativas de imersão, os videojogos e o RPG impuseram à dramaturgia uma dimensão sob a qual os contadores de história não tinham plenitude: a interatividade. Em qualquer “Pac-Man” instalado num bar ou no “Dungeons & Dragons” mais primário o receptor da narrativa é um coautor com o poder de interferir nos rumos da narrativa. Até o fim dos anos 1990, quando a CNN deu ao Jornalismo uma dimensão de espetáculo e uma série de eventos do dito mundo real tinham um grau de inusitado capaz de desafiar as diretrizes da ficção, «Matrix» chegou às telas com a proposta de transformar em fantasia a teoria da “jogabilidade”, apoiando-se numa estrutura de ação mais espetacular do que as reportagens das guerras do Médio Oriente feitas pela TV naquele momento de sensacionalismos gourmet. Misturando kung fu com Kant e orientalismo com linguagem da MTV, a produção de US$ 63 milhões se impôs como uma revolução – ditando os rumos das veredas ficcionais da seguinte década, com seus enquadramentos e seus efeitos especiais – ao levantar uma teoria da conspiração acerca do conceito do “interativo”: e se, no dia a dia, alguém “jogasse” a vida por nós? Um segundo filme («Matrix Reloaded») foi feito em 2003 ampliando as inquietações do original sob um prisma de confronto que acabou sendo derrubado pelo terceiro tomo da franquia, “Revolutions”, pautado por uma noção de “aceitação” do impasse. O gosto de que uma saga memorável foi fechada pela submissão aos procedimentos do viver, numa reflexão menos kantiana e mais próxima de Wittgenstein (“Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar.”), cai por terra agora, 21 anos depois do início do projeto, com um quarto e lírico filme, num momento de “transição” das suas vozes autorais. Agora, na sua vivência de mulher trans, Lana Wachowski conduz a direção da saga com a mesma inquietação que se viu na longa-metragem de 1999, fazendo um novo “apelo à guerra”, construído sob o princípio de que máquinas reconfiguraram “o sistema”, recuperando todo o controle que antes era compartilhado com a Humanidade, oferecendo ao Salvador, Neo (um inspiradíssimo Keanu Reeves) uma letárgica inércia. Mas o bug que o leva ao despertar é o bug do querer, movido pelo desejo por alguém que a distância não apagou: Trinity, vivido por uma Carrie-Anne Moss avassaladora. O resultado é um novo game… passional e furioso.
Lana constrói planos com uma elegância invejável, demonstrando o quanto evoluiu em duas décadas. Faz um filme cerebral, mas envolvente.
