Mal Viver é a expressão última do trabalho de João Canijo (n.1957), a síntese perfeita do seu esforço e inspiração para radiografar o que é isto de ser português. A súmula do seu talento, criatividade e escolha criteriosa da equipa: desta vez a agradável surpresa de Leonor Teles para a direção de fotografia, num trabalho notável de enquadramento e luz (natural e artificial) -e do montador João Braz, notável no corte, na passagem dum plano a outro e na conjugação som/imagem na montagem – cito Elia Suleiman, realizador palestiniano quando afirmou: “Encontrar e dominar o ritmo de um filme é o mais exigente dos riscos. Se um filme falha ritmicamente, todo o edifício colapsa” – aqui o edifício (filme) está sólido e o ritmo não falha, atinge o seu fim.
A história é simples: uma família, um hotel no norte litoral de Portugal, um modo de vida conservador e rígido, um espaço parado num tempo diferente dos pós-modernos e acelerados ritmos da sociedade atual. O luto chegou à família com o desaparecimento do marido da nossa brilhante protagonista, a habitual parceira/estrela das obras de Canijo, Anabela Moreira. As tensões, discussões, silêncios, tudo é filmado com uma naturalidade, à qual ajudaram dois fatores: a experiência em trabalhar com o realizador do leque de atrizes – escolhas de sempre de Canijo, em especial desde «Sangue do Meu Sangue», à cabeça Rita Blanco, Cleia Almeida, a Anabela Moreira, repito uma composição quase perfeita neste «Mal Viver», e uma agradável surpresa no papel de filha e neta, a jovem Madalena Almeida; e, finalmente, o texto ou o argumento, as falas, e os respetivos planos escritos, laboriosamente ao longo dos últimos anos, os quais na rodagem ganharam vida e magia. É o filme mais completo de João Canijo, um dos melhores filmes portugueses de sempre.
A realização e a mise en scéne (escolha de planos, décores, enquadramentos, cenas e sequências, a utilização magnífica do fora de campo, a ausência de música e a tensão dramatúrgica) atingem um grau de completude e naturalidade, insisto neste ponto, e elevam «Mal Viver» para o patamar da qualidade e da perenidade temporal. Este é um filme magnífico hoje, e vai sê-lo para a eternidade do nosso cinema, tão artesanal quanto singular, tão invulgar quanto insuficiente em recursos, incapaz de seduzir o nosso próprio público, ao contrário de cinematografias europeias como a francesa, geradoras de recursos e com relação positiva com os seus espetadores mais próximos – os falantes da própria língua. Mas isso são outros quinhentos! A ver!
Título Original: Mal Viver Realização: João Canijo Elenco: Anabela Moreira, Rita Blanco, Madalena Almeida, Cleia Almeida, Vera Barreto Duração: 127 min. Portugal/França, 2023
[Texto publicado originalmente na Revista Metropolis nº94, Junho 2023]
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