Page 8 - Revista Metropolis nº99
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A HERANÇA DE INGMAR BERGMAN
OPINIÃO
JOÃO LOPES
As actuais relações cinema/ nesse domínio eminentemente televisivo que
televisão e, em particular, eram os telediscos. Seja como for, lembremos
cinema/streaming surgem um acontecimento ocorrido há meio século:
com frequência como no plano simbólico, não haverá muitos
um debate sobre formas produtos contemporâneos cujo impacto possa
de produção e difusão. ser comparado ao da série «Cenas da Vida
Daí algumas perguntas Conjugal», de Bergman, com Liv Ullmann e
esquemáticas que vamos Erland Josephson, estreada no canal público
formulando. Por exemplo: como seria se o novo da televisão da Suécia em 1973.
filme de Martin Scorsese, «Assassinos da Lua
das Flores», não passasse nas salas escuras? O fabuloso retrato da intimidade de um casal
Ou ainda: será que faz sentido não mostrar existiu mesmo como um objecto híbrido em
«O Conde», de Pablo Larraín, nessas salas? que todas as diferenças pareciam existir de
modo igualmente sedutor: foi uma série de
Houve um tempo em que tais relações, não seis episódios e também uma longa-metragem
sendo tão dramáticas, eram sobretudo mais estreada nos cinemas (o filme chegou às salas
genuínas — porque mais ligadas a escolhas portuguesas em 1976).
de natureza criativa, não necessariamente
contaminadas pelas guerras do comércio A sua descendência é, aliás, plural: primeiro, em
cinematográfico. Depois das “novas vagas” da «Maridos e Mulheres» (1992), filme de Woody
década de 1960, realizadores como Jean-Luc Allen que explora um dispositivo narrativo
Godard, Michelangelo Antonioni ou Ingmar inspirado em «Cenas da Vida Conjugal»;
Bergman souberam mesmo encarar a televisão depois, na nova e brilhante versão da série de
como uma forma complementar de criação. Bergman, «Scenes from a Marriage» (2021),
criada por Hagai Levi, com Jessica Chastain
Claro que continua a haver autores que não e Oscar Isaac no par central. O mínimo que
são estranhos a tais dinâmicas. Para nos se pode dizer é que a herança de Bergman é
ficarmos por um dos exemplos mais óbvios, alheia a qualquer oposição automática entre
e também mais admiráveis, lembremos a diferentes ecrãs. Porquê? Sem dúvida porque a
trajectória de David Fincher, aliás iniciada sua linguagem sabe adaptar-se a qualquer ecrã.
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