É um facto: muitas vezes, os espectadores europeus conhecem mal o cinema da Europa. Acima de tudo, tendem a definir esse cinema como uma antítese absoluta do cinema americano (e o simples facto de o fazerem, significa também que conhecem mal o próprio cinema americano).
Há outra maneira de dizer isto: podemos supor que para uma percentagem muito significativa de espectadores, «Lucy» será visto, recebido e avaliado como um filme “made in USA”. E pelas razões mais automáticas e também, se me permitem, mais simplistas: uma grande vedeta americana (Scarlett Johansson), um ambiente vertiginoso de “thriller”, enfim, uma utilização exuberante dos chamados efeitos especiais…
Ora, por uma simples razão de esclarecimento dos espíritos, importa dizer que «Lucy» é um filme visceralmente europeu. Mais ainda: não é verdade (nunca foi verdade) que o cinema francês seja feito apenas de filmes mais ou menos intimistas, ligados às matrizes melodramáticas (alguns assombrosos, convém dizer). Porquê recordar isto? Porque «Lucy» é um filme europeu e… francês!
Escusado será dizer que nenhum filme é “bom” ou “mau” por causa das suas origens geográficas ou culturais. Não é isso que está em causa. O que importa sublinhar é o facto de «Lucy» corresponder a uma estratégia de espectáculo que, obviamente não sendo estranha a modelos há muito explorados pelos americanos, tem as suas raízes deste lado do Atlântico, ilustrando o continuado empenho de um francês — o produtor e realizador Luc Besson — em fazer um cinema que se afirme, ponto por ponto, no mesmo terreno em que, tradicionalmente, os americanos são o poder mais forte.
Não admira, assim, que «Lucy» lide com um tema genuinamente universal. A saber: a possibilidade de inusitados e perversos cruzamentos entre os seres humanos e as máquinas, a ponto de sermos levados a questionar as coordenadas mais clássicas da nossa identidade.
Lucy/Johansson é uma jovem que, ao funcionar como “mula” de um transporte de droga (inserida no seu abdómen), começa a ser afectada pela diluição dessa droga na sua corrente sanguínea, dando sinais de uma crescente e inquietante agilidade mental. De acordo com a sugestiva frase do cartaz do filme: “A pessoa normal utiliza 10% da sua capacidade cerebral. Imaginem o que poderia fazer com 100%”.
«Lucy» não é, entenda-se, uma tese científica. O que o filme de Besson consegue, muito à maneira da mais tradicional “série B”, é construir uma intriga mirabolante em que convergem temas e angústias do nosso presente. Dito de outro modo: esta é a prova muito real de que é possível fazer um cinema seduzido pelos artifícios do espectáculo, sem perder a sua relação com o nosso aqui e agora. Na América como na Europa.
Título original: Lucy Realização: Luc Besson Elenco: Scarlett Johansson, Morgan Freeman, Min-sink Choi, Amr Waked, Julian Rhind-Tutt Duração: 89 min França, 2014
[Texto originalmente publicado na revista Metropolis nº21, Setembro 2014]