Aclamada pelo seu domínio do intimismo, a argentina Lucrecia Martel, é uma das mais consagradas cineastas do continente sul americano, confirma conexões diretas entre a institucionalização da corrupção nas colónias da América do Sul do século XVIII – tema de seu aclamado «Zama» – e as atuais crises económicas do continente. Lançado numa sessão especial no Festival de Veneza de 2017, a produção reforça a busca estética da diretora, famosa por histórias baseadas em submissões e em contenções como «O Pântano» (2001) e «A Menina Santa» (2004). É a primeira longa-metragem dela após um hiato iniciado em 2008, quando lançou «A Mulher Sem Cabeça».

“Nós iluminamos a Argentina nos 1800 fugindo da solução mais habitual, que é usar velas e fogo. Para isso, pesquisamos bastante a região onde filmamos, para entender a sua luz natural. O cinema é uma questão de busca e de perverter uma visão previamente estabelecida da realidade”, diz Lucrecia. “«Zama» fala sobre corrupção.

E, nisso, este é um filme profundamente brasileiro, assim como é um filme profundamente argentino. Não vejo diferenças territoriais assim como não vejo diferenças entre Bem e Mal nos personagens. O Mal é uma forma de legitimar injustiças”.

Na nova longa-metragem da diretora, o mexicano Daniel Giménez Cacho assume o papel do título: Zama é um inspetor da Coroa de Espanha que fiscaliza irregularidades no território colonial numa zona equivalente a Asunción. A presença de um temido bandido nas redondezas vai levar Zama à ação. Os brasileiros Matheus Nachtergaele e Mariana Nunes integram o elenco da longa-metragem, coproduzida por Vânia Catani (de «O Palhaço»). As belas imagens são frutos da química perfeita entre Lucrecia e o português Rui Poças, um dos maiores fotógrafos da Europa na atualidade.

Quem é Zama e o que ele representa em relação à génese colonial das Américas?
LUCRECIA MARTEL: Ele é o mal que cerca a diligência das elites de subverter as necessidades do seu povo em prol de interesses pessoais. Ele é aquele funcionário que se deixa empoderar por pequenos poderes. Tentei, a partir dele, fazer um filme sobre o passado que conversa de modo direto com o presente. Eu costumava falar em classes sociais e suas diferenças, mas percebi que, hoje, o conceito político mais adequado à divisão da sociedade seria casta, dado ao processo de concentração de renda que vemos no processo capitalista.

Quando Vicuña Porto, o dito bandido das colónias aparece, Zama precisa caçá-lo, como se fosse um herói. Qual é o heroísmo dele?
LUCRECIA MARTEL: Chamaria ele de anti-herói, pois ele toma decisões equivocadas em relação ao bem da colónia, refém da sua insegurança. E é esse um dos pontos que tento discutir em função da corrupção. O princípio de nossa insegurança, nas Américas, é a má distribuição de renda. Construímos mitos de banditismo, como Vicuña, para dissimular injustiças.

Qual é a maior injustiça histórica da colonização argentina?
LUCRECIA MARTEL: O triunfo da nossa colonização foi a construção de um mundo que existe para sustentar uma elite que está fora dele, nas metrópoles. A nossa aristocracia colonial se fez pelo interesse na Europa e não nas necessidades do continente. E ainda é assim. Mas as culpas dos nossos males não podem ser imputadas apenas aos colonizadores. Muita coisa piorou em nossos processos de independência, quando foi institucionalizada a exclusão dos índios, dos negros, dos povos bestializados pela escravidão.

Foram quase dez anos entre «A Mulher Sem Cabeça» (2008) e «Zama» (2017). Por que você demorou tanto fora das telas?
LUCRECIA MARTEL: «Zama» é um filme mais complexo em relação as minhas anteriores longas, o que exige mais tempo de trabalho. E eu não trabalho com pressa, pois não preocupo em desfrutar dos benefícios de ter filmes novos toda hora, para poder estar sempre em festivais. Prefiro esperar ter uma ideia que me apaixone e que essa paixão me leve a filmar. Já há demasiados filmes por aí. A abundância complica a reflexão.

É difícil traçar conexões claras entre os seus filmes e a obra de diretores argentinos que foram revelados na mesma época que você, entre os anos 1990 e 2000. Que lugar você ocupa na conjuntura audiovisual da Argentina?
LUCRECIA MARTEL: Sinto muita alegria de pertencer ao cinema argentino, pois existe diversidade nele. Temos filmes de denúncia, temos filmes de uma burguesia branca que considera sua própria depressão a coisa mais importante do mundo, temos experimentações formais. É um colorido interessante no continente.

[Entrevista publicada na revista Metropolis 59 – Abril 2018]

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