[Crítica originalmente publicada na revista Metropolis nº20, Junho 2014]
A conjetura do mercado de cinema tem destas coisas. Desde o Festival BFI London que «Locke», de Steve Knight, ganhou peso de acontecimento. De repente, o tal pequeno filme inglês com o ator da berra parecia trazer o cálice sagrado do cinema moderno. A ver, «Locke» não é um rato parido pela montanha, nada disso. Mas a história de um chefe de obras que decide abandonar uma construção na véspera de um importante dia para tratar da sua vida pessoal não é uma obra-prima. Pior do que isso: não beneficia de todo o “hype”. Mas as boas notícias: Steven Knight fez uma obra que sobrevive a tudo isso. Um filme sobre as decisões que mudam uma vida. Todo passado no interior de um automóvel e apenas com a câmara a focar um ator, o gigante Tom Hardy, «Locke» é um objeto único. A prova sagrada que ainda podemos ficar presos ao rosto de um ator e às suas palavras, ou seja, ao poder de um argumento.
Se quisermos ser mauzinhos podemos sempre dizer que Abbas Kiarostami já fez isto. Já fez, já, mas há aqui uma outra intenção de cinema. Como se o “tour de force” não fosse a questão do “huis clos” do carro, o mais importante acaba por ser o desígnio de “ filme de palavra” mas com requintes de esteta. Recorde-se que Knight é conhecido por ser o argumentista de filmes como «Promessas Perigosas», de David Cronenberg ou «Circuito Fechado», de John Crowley, belo filme de espionagem que por cá foi estupidamente ignorado. Ou seja, ideias de argumento que se tornam em achados estéticos. Mas mais do que filmar a vida a acontecer, «Locke» é sobretudo uma demonstração da plenitude de um guião com um “pathos” incrível e com poderes dramáticos francamente inquietantes. A tal ponto que na viagem deste homem moralmente dividido há sempre um sabor de imprevisibilidade, mesmo quando percebemos que ele está numa auto-estrada a caminho de uma direção anunciada. Não há nada aqui que seja empastelado, nada é forçado ou repetitivo. Esse é o milagre de um filme que apenas não é inesquecível porque tem momentos em que quer “desanuviar”, seja com inclusões musicais, seja através de intervalos de ligeireza que deixam a desejar. Mas «Locke» é um pequeno grande feito. Um grande presente a um dos maiores atores do momento: Tom Hardy
Rui Pedro Tendinha
Título original: Locke Realização: Steven Knight Elenco: Tom Hardy, Olivia Colman, Ruth Wilson, Andrew Scott, Tom Holland. Duração: 85 min. EUA/Reino Unido, 2013