«Lincoln» abre com imagens de reconstituição da guerra civil americana. Imagens brutais, dilacerantes, que evocam outra sequência, mais longa, não menos brutal, de «O resgate do soldado Ryan». Spielberg cita-se, portanto. Porém, ainda que Spielberg seja um admirador de Kurosawa e lhe tenha estudado as sequências de guerra – compostas e pintadas primeiro pelo realizador japonês e depois filmadas como quadros da dilaceração humana num movimento cinematográfico que é a afirmação da mais pura genialidade – em nenhum dos seus filmes capta a essência do horror da guerra como o faz o autor de «Kagemusha» e de «Ran». Porquê? Spielberg não resiste aos efeitos fáceis, aos maneirismos, à manipulação emocional do espectador. Spielberg usa o horror da guerra para afirmar a grandeza de um povo enquanto Kurosawa filmou a guerra para mostrar que não há grandeza na guerra. Só razia e desumanização.

Se existe génio em «Lincoln» incorporou em Daniel Day Lewis. Transfiguração, física e de carácter, impecável. Secura da figura animada pelo espírito com que o actor conta as histórias-parábola – mesmo que estas sejam uma invenção para atestar a simplicidade bíblica do primeiro presidente republicano da história dos EUA e para recriar o sentido político do estadista [que Spielberg teima em contrastar com a figura do presidente-pai, sempre presente e protector. O pai dos seus filhos de sangue e pai de coração de todos os americanos]. Reconheça-se, de resto, mérito a Spielberg na selecção do elenco. Os actores escolhidos cumprem nos papéis que lhes foram atribuídos e Tommy Lee Jones como Thaddeus Stevens é sempre Tommy Lee Jones. Sempre bem, portanto.

Um elenco não chega, porém, para que haja cinema e «Lincoln» está mais próximo de uma série televisiva à imagem das que Spielberg tem produzido nos últimos anos. É um filme que aborrece, demasiado longo. O argumento intelectualizante de Tony Kushner não é, como se procurou que fosse, o contraponto justo para as opções maneiristas do realizador. De resto, o filme dispensava bem a abordagem dos dramas pessoais do presidente e da sua mulher, interpretada por Sally Field. Resultado: longos minutos de conversas verdadeiramente dispensáveis. Demasiada Sally Field, demasiada intriga secundária que pouco acrescenta à trama principal e que serviria para melhor compôr o retrato do homem para além do estadista. Serviria, não fosse o aborrecimento em que resultam.

Em «Lincoln», que se baseia na obra da historiadora Doris Kearns Goodwin, “Team of Rivals: The Political Genius of Abraham Lincoln”, o primeiro presidente dos EUA que foi assassinado é mostrado quase sempre a propósito de factos ocorridos em 1865 durante o desfecho da guerra civil. Após o Senado aprovar a emenda, em 1964, que tornou a escravatura ilegal nos EUA, o desafio, no ano seguinte, é que a incorporação da mesma pela Constituição americana seja também aprovada pela Casa dos Representantes. Para tal, Lincoln – cuja acção já foi plesbicitada e foi reeleito – tem que lidar menos com a oposição democrata do que com os republicanos como Thaddeus Stevens. Este sustenta que a igualdade racial o é perante Deus e não apenas da lei, como a emenda – a 13ª à Constituição – sugere.

De resto até a fotografia de Janusz Kaminski, o director de fotografia dos filmes de Spielberg, compõe os eventos com uma aura que atesta ao espectador que o que está a ver é um passado filmado no presente mas passado. É um presente fixado com o olhar de quem está a fixar momentos históricos. É o passado glorificado, pois.

Jean-Michel Frodon escreveu um livro, fundamental, sobre a projecção nacional através do cinema. O cinema americano de Spielberg tem esta “qualidade” de querer captar a essência do ser americano. Na América presidida pelo primeiro negro, na América de Obama, é tempo de celebrar o primeiro presidente que libertou os negros da escravatura. Sentido político e do bem, humanidade e firmeza são as qualidades de Lincoln que podem atribuir-se ao povo americano segundo S. Spielberg. Nenhum outro realizador norte-americano contemporâneo quer e consegue, como Spielberg, projectar a nação e as qualidades desta em que todos os americanos se devem rever e o mundo admirar. A manipulação da imagem – os efeitos de gosto duvidoso a apelar à comoção – é o instrumento da manipulação da consciência identitária e da afirmação nacional americana.

«Lincoln» era, até à estreia de «Os Miseráveis», o grande candidato à edição dos Óscares de 2013. Se o seu triunfo se confirmar, é a glorificação revisionista da América que triunfa também e a afirmação de que a mais poderosa máquina de cinema do mundo continua a funcionar no que faz melhor: a projecção da nação americana e a redefinição permanente do que é a essência do ser americano. Maria do Carmo Piçarra

Título original: Lincoln Realização: Steven Spielberg. Elenco: Daniel Day Lewis, Tommy Lee Jones, Sally Field, David Strathairn, Joseph Gordon-Levitt. Duração: 150 min EUA, 2012

[Texto originalmente publicado na revista Metropolis nº5, Janeiro 2013]

https://www.youtube.com/watch?v=nvP-ZrzA2lk
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