Assegurado para alguns territórios pela plataforma MUBI, «Valor Sentimental» («Sentimental Value», concorrente da Noruega à Palma de Ouro, é a certeza de que a potência sugerida por «A Pior Pessoa Do Mundo», em 2021, depurou-se nos últimos quatro anos. A dupla Joachim Trier e Reanate Reinsve alcança alquimia plena num drama familiar sobre a paternidade, fraternidade, teatro e cinema com um Stellan Skarsgård em estado de graça. Aliás, ele talvez seja a aposta mais forte para o prémio de interpretação masculina deste Festival de Cannes, que termina no sábado. Stellan Skarsgård interpreta um cineasta que tenta convencer a filha atriz a estrelar um argumento que espelha o suicídio da sua mãe. A irmã da tal estrela tenta moderar os conflitos dos dois, que cresce quando o realizador chama uma vedeta americana (Elle Fanning) para protagonizar um argumento relativo às suas crias. Reanate Reinsve tem sequências devastadoras para si, numa estrutura narrativa que sufoca a cada revelação. A sua boa receção amplia o interesse pela obra pregressa de Joachim, sobretudo a longa que fez em língua inglesa há dez anos: «Louder Than Bombs» [foto]. Os streamings flertam com ele. As lojas de DVDs o expõem nas vitrines.

Acolhido no Festival de Cannes de 2015 pela excelência de um guião capaz de oxigenar as fórmulas do melodrama, «Ensurdecedor» [«Mais Forte Que Bombas» no Brasil] é um ensaio nas raias da poesia sobre a fragilidade masculina, analisada a partir do seio familiar. Não é por acaso, que uma força feminina tira os seus homens do prumo pela pior das formas de opressão: o luto. Isabelle Huppert é a mãe eternizada na ausência: uma fotógrafa de guerra aclamada mundo afora que morre numa das suas reportagens. Perante o facto o espectador é impactado pela certeza da sua perda. Porém, mais do que saudades, ela deixa segredos. São fatos que conheceremos, cena a cena, não apenas por flashbacks mas pela expressão de dor, de remorso e mesmo de vergonha pelo seu marido e dos seus filhos, Na Morte, ela se torna uma sombra que sufoca os personagens com construídos sob a rígida batuta de Joachim Trier, realizador do premiado «Oslo, 31 de Agosto» (2011). 

Para nadarmos no mar de amargura na qual os machos da família Reed se afogam, até chegarmos ao porto seguro do afeto, Trier oferece-nos como rota a observação do processo de amadurecimento do filho mais jovem da falecida: Conrad, encarnado pelo talentoso Devin Durand. A sua agressividade e o seu autismo digital (traduzido na imersão cotidiana no seu computador) são formas de abalar a paz de um pai despedaçado pelo sofrimento: Gene. Ele é encarnado pelo irlandês Gabriel Byrne (da série «Em Terapia»), um dos atores mais talentosos da Europa.

Ainda apaixonado pelo fantasma de uma companheira calorosa, cuja perfeição vai sendo atomizada a cada twist de argumento, Gene vive numa luta diária para se conectar com Conrad e para procurar o filho mais velho de volta para o seu convívio. O seu primogénito é Jonah, interpretado por Jesse Eisenberg. Jonah se orgulha do seu equilíbrio e retidão, mas é dominado pela incerteza, marcado pela incapacidade de lidar com as mulheres. São, na prática, três órfãos carentes do carinho de uma (omni)presença uterina arrancada deles pela violência do mundo. É nessa percepção que o filme se politiza, fazendo jus ao título ao mostrar que «Mais Forte Que Bombas» é o desamparo deixado pela brutalidade.

Para propor essa reflexão, Trier usa cânones melodramáticos – ao usar temas como infidelidade e amizade entre irmãos – mas dá-lhes um tratamento visual arejado, numa narrativa de montagem febril. Os assuntos em questão também dão norte a «Sentimental Value», numa marca autoral de Joachim. Aliás, a edição de 2025 do Festival de Cannes está repleta de debates sobre fraternidade.

foto de abertura: © Kasper Tuxen

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