JERSEY BOYS

JERSEY BOYS

[Crítica publicada na revista Metropolis nº22, Setembro 2014]

Recebido nos EUA com uma indiferença chocante (porque alheada da complexidade das memórias, históricas e estéticas, que mobiliza), «Jersey Boys» tem chegado a todo o lado com um equívoco rótulo promocional: “Clint Eastwood fez um filme musical!…”.

Porquê equívoco? Como o próprio Eastwood já teve oportunidade de esclarecer, a história dos Four Seasons — grupo pop que teve a sua época de glória na década de 60, funcionando como uma alternativa “clássica” à revolução liderada pelos Beatles — não surge tratada de acordo com as regras do género musical. Dito de outro modo: os números musicais, neste caso as canções, não entram no filme como uma “derivação” da acção, precisamente abrindo um hiato… musical. Nada disso: em «Jersey Boys», a música é uma parte essencial da acção — trata-se de evocar um tempo e uma experiência de vida em que cantar (ou não cantar) podia ser uma dramática questão de sobrevivência.

Curiosamente, o ponto de partida do filme é visceralmente teatral: estamos perante uma adaptação do musical homónimo, da Broadway, com argumento de Marshall Brickman e Rick Elice. Aliás, Eastwood conservou a maioria dos intérpretes de palco, tendo introduzido apenas duas escolhas mais pessoais: Vincent Piazza, no papel de Tommy DeVito, guitarra do grupo, e Christopher Walken, interpretando Gyp DeCarlo, o gangster que viria a proteger os Four Seasons. Ao mesmo tempo, apetece ser redundante e sublinhar que não haverá muitos objectos de cinema tão… cinematográficos como «Jersey Boys».

Que faz, então, Eastwood? Muito para além da dimensão trágica inerente à história musical dos Four Seasons (sendo o envolvimento com determinadas figuras da mafia uma componente decisiva de tal dimensão), «Jersey Boys» traça um fresco de uma época de profundas transformações sociais, ao mesmo tempo que desmonta, ponto por ponto, as atribulações de um grupo dividido entre a “arte” e o “negócio”, a verdade íntima da expressão artística e as máscaras públicas dessa mesma expressão.

Onde está, então, o cineasta que desmontou a derradeiras ilusões míticas do Oeste americano em «Bronco Billy» (1980)? Ou que, em «Bird» (1988), revisitou o desespero criativo de Charlie Parker? Ou ainda que, em «Mystic River» (2003), percorreu os fantasmas mais viscerais da vida de uma comunidade? Pois bem, esse é o mesmo cineasta que assina este fabuloso «Jersey Boys». A saber: alguém que não abdica de ver o seu país como lugar idealizado de um sonho (“americano”), ao mesmo tempo que não receia enfrentar a coexistência desse sonho com as sombras do pesadelo.

João Lopes

Título original: Jersey Boys Realização: Clint Eastwood Elenco: John Lloyd Young, Erich Bergen, Michael Lomenda, Vincent Piazza, Christopher Walken. Duração: 134 min. EUA, 2014