[Entrevista publicada originalmente na Revista Metropolis nº91]

A viver uma montanha russa de sentimentos e ainda extasiados por tudo o que tem acontecido desde que «Ice Merchants» caiu no radar dos admiradores da curta-metragem Bruno Caetano, produtor, e João Gonzalez, realizador e argumentista, conversam, por Zoom, com a Metropolis sobre um dos momentos mais marcantes das suas vidas: o apuramento para as cinco curtas candidatas ao Óscar de Melhor Curta de Animação. Bruno Caetano tem um sorriso nos olhos e João Gonzalez enfrenta mais uma entrevista com uma simplicidade desarmante e uma timidez cativante, mas ambos estão a viver uma das maiores viagens das suas vidas e nós queremos mesmo que eles cheguem a bom porto.

Ainda num misto de felicidade e exaustão, João Gonzalez responde-nos num quarto de hotel onde estão alojados os realizadores candidatos ao prémio de Melhor Curta-Metragem de Animação do Festival de Clermont-Ferrand – a três dias de conhecer os vencedores. Bruno Caetano está noutro hotel, também em Clermont-Ferrand, como produtor de um filme que traz o maior orgulho a uma cooperativa (COLA) que muito tem feito para que a animação ganhe outro palco e outro destaque no mercado nacional e internacional.

Estão separados fisicamente por escassos metros, mas muito unidos na missão e aventura que os trouxe até aqui, a poucos dias de se sentarem num almoço com outros nomeados aos prémios mais cobiçados da indústria cinematográfica, o Oscars Nominees Luncheon. Não fazem questão de ficar na mesa de ninguém em particular, até porque isso os deixaria muito nervosos, mas John Williams e Spielberg são dois dos nomes que saltam imediatamente quando pensam nessa possibilidade.

Ainda não sabem o que dizer no discurso de aceitação da estatueta, pois acham que não vão ter de o fazer e porque acreditam que não pensar muito nisso lhes tira os nervos e a ansiedade, mas ficou a dica para dizerem algo em português, e, esperamos nós, que antes da música de orquestra começar, pois certamente que terão inúmeras pessoas para agradecer e muita coisa para dizer, naquela que poderá ser a primeira vez que a estatueta dourada vem para Portugal.

«Ice Merchants», a curta-metragem de 14 minutos que junta já mais de 100 exibições em festivais e mais de 44 prémios – incluindo o Leitz Cine Discovery Prize, no Festival de Cannes, o Prémio do Público no London International Animation Festival e o prémio de Melhor Curta do Ano, atribuído pela Short Film Conference, entre outros –, tem sido muito acarinhada pelo público em geral e pelos profissionais da indústria um pouco por todo o mundo. Mas voltemos ao início, a como tudo isto começou.

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Paixão pela música
João Gonzalez conheceu o piano aos quatro anos, quando o seu pai, também pianista, o introduziu nesta arte. Aos 12 anos fechou a porta a esta paixão e só voltou a reabri-la quando já tinha 19, antes de entrar para a faculdade.
Ao mesmo tempo que pensava no que queria ser, foi a sua sorte – e a nossa – que o exame de matemática não tenha corrido como esperado. “A minha primeira opção era Engenharia e Informática e falhei no exame de Matemática, que me iria colocar na primeira opção. Esse revelou-se um dos exames mais importantes da minha vida, pois acabei por entrar no curso de Multimédia, que era algo muito bom para alguém como eu, que estava um bocado perdido. Sabia que gostava de artes, mas não sabia exatamente do quê. Essa licenciatura em Multimédia, na ESMAD, pôs-me em contacto com a fotografia, o vídeo, design e animação. Aos poucos comecei a divergir um bocadinho mais para a animação, ao mesmo tempo que recomecei a tocar piano», acrescenta.

Percebeu então que seria através da junção da música e da imagem que o cinema seria o seu caminho, mas a realização só apareceu no terceiro ano de faculdade, quando idealizou o seu projeto final e experimentou fazer um filme de animação, ao mesmo tempo que tocava a banda sonora ao piano. Apesar de hoje não deixar que ninguém veja esse primeiro filme, foi precisamente esse momento que cativou o olhar e a admiração de Bruno Caetano.
Bruno Caetano e João Gonzalez conheceram-se através de outro membro da Cooperativa Cola, Ala Nunu – também responsável por animar alguns planos de «Ice Merchants» – que disse ao Bruno para conhecer o João. “A Ala Nunu mandou-me uma mensagem que dizia: “olha, já que estás no Cinanima, está aí um amigo meu, o João. Acho que devias falar com ele”. Eu vi o filme do João nesse dia e fiquei muito impressionado com o que ele fez. Já conhecia o primeiro filme dele, mas são sabia que era do João. Na altura gostei imenso do filme e já o quis ver outra vez mas o João não deixa ninguém ver esse filme», afirma Bruno, enquanto João acena e ri.

João Gonzalez, por seu lado, há muito que conhecia o trabalho da Ala Nunu e agradece-lhe hoje em dia essa inspiração pois foi o facto de a realizadora polaca ter estudado no Royal College of Art que o fez decidir ter a sua formação no mesmo local, em Londres, embora só se viessem a cruzar e conhecer pessoalmente no Festival de Cinema de Animação de Annecy.

Hoje, os três fazem parte da cooperativa Cola que, como descreve o produtor e também realizador Bruno Caetano, é «um espaço saudável para que todos os que estão connosco possam produzir aquilo que gostam e fazer o filme que querem». Hoje em dia, esta relação faz a diferença no trabalho de João Gonzalez e de outros realizadores que operam na cooperativa, porque é um lugar onde todos são ouvidos e até criticados, mas sempre com carinho e amor por aquilo que se está a produzir. «Colaborar com a Cola é algo bastante especial pois encontramos pessoas não só talentosas mas extremamente bondosas, preocupadas com o bem-estar e funcionamento de toda a equipa. Além disso, quando há algo que acham que não está bem são frontais e a honestidade é das coisas mais importantes que eu posso, como realizador, pedir quando estamos a partilhar ideias. Portanto, sem dúvida alguma, toda a comunidade da Cola foi fulcral na conceção deste filme», reflete o cineasta.

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Ice Merchants

As primeiras ideias para a história de um homem e do seu filho, que vivem numa casa vertiginosa presa no alto de um precipício, e que todos os dias saltam de para-quedas para a aldeia mais próxima para venderem o gelo que fabricam durante a noite, surgiram durante um sonho, que depois o realizador foi desenvolvendo.
«O João já tinha uns planos e depois a Ala Nunu também animou mais um ou outro, antes de concorrermos ao ICA. Quando começámos a juntar os planos todos, percebemos pela reação das pessoas que tiveram oportunidade de o ver na altura, que estávamos na presença de algo que estética e narrativamente ia funcionar muito bem. Depois, foram cerca de dois anos, em que trabalhámos on e off no projeto. A seguir, o João pegou em tudo, deu umas voltas inesperadas e o filme ficou ainda mais interessante. Em 2022, adicionamos mais um plano aqui e outro ali, às vezes coisas muito curtas de dois segundos, mas que só aconteceram porque o João teve tempo para os pensar, e que ofereceram uma maior capacidade de as pessoas sentirem qualquer coisa forte quando o vissem», contextualiza Bruno Caetano.

Num mundo desligado e frio como este que vivemos atualmente, as emoções que saltam durante o momento em que visionamos «Ice Merchants» são aquelas que nos ajudam a centrar novamente no que vale a pena: a importância da família, o amor, a proteção e segurança de quem nos quer bem, e a memória de todos os que foram importantes para nós. Mas a curta de animação assinada por João Gonzalez tem muitos outros atributos que poderão fazer história no mundo da animação nacional e a boa notícia é que a curta estará disponível no cinema.

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Novo sistema de distribuição

A Cinemundo é a responsável pelos direitos de distribuição para as salas de cinema em Portugal e em conjunto com a equipa do filme encontraram uma forma de fazer a diferença neste segmento. Desde o dia 16 de fevereiro que «Ice Merchants» é disponibilizada nas salas de cinema dos principais exibidores (30 cinemas de 9 exibidores), em sessões próprias e com horários dedicados, num modelo inédito de exibição no circuito comercial nacional, sendo uma oportunidade para todos poderem visionar o primeiro filme português nomeado para um Óscar da Academia. «Estamos mesmo muito contentes de ter malta criativa e com vontade de experimentar novas possibilidades de distribuição. Quem sabe se não se cria aqui uma sinergia para que outros filmes possam ser apresentados da mesma maneira», adianta o produtor.

João Gonzalez concorda plenamente e fala da oportunidade fantástica de o trabalho dele e da equipa poder chegar ao público, que é a quem ele se dirige, e acrescenta que «obviamente que os prémios são bem-vindos assim como as seleções em Festivais, mas acima de tudo queremos que os filmes cheguem às pessoas e por isso uma oportunidade destas é uma das maiores vitórias do percurso do filme. Saber que o filme vai estar acessível para ser visto com as condições perfeitas para a sua visualização, com atenção ao trabalho da equipa incrível no som, com músicos, som designers, orquestradores e engenheiros de som, isso é muito bonito e deve ser aproveitado».

O trabalho da equipa de comunicação e da cobertura internacional tem sido fantástico, com o New Yorker a assegurar muita da visibilidade internacional, mas ao serem questionados sobre se houve alguma pergunta que não lhe fizeram durante estas entrevistas todas, Bruno acha que essa é a pergunta que nunca lhe fizeram antes, mas que gostaria que lhe tivessem perguntado seria: “De que forma é que vos podemos ajudar?”. Isto porque se encontravam, à data desta conversa, numa «correria insana para tentar arranjar apoios financeiros para a campanha, de forma a conseguirem minimamente competir com todos os filmes que estão a concurso, todos eles meritórios, mas alguns com bolsos mais fundos, que conseguem fazer um outro tipo de campanha. Tem sido muito complicado criar um plano funcional e realista que nos dê hipóteses. Acredito que não seja por falta de vontade, a verdade é que ninguém estava à espera que se chegasse tão longe». Felizmente, Bruno Caetano diz-nos que acaba de ter uma boa notícia e mais tarde viemos a constatar que o Ministério da Cultura iria assegurar as “despesas inerentes à representação e à promoção” do filme «Ice Merchants», na corrida aos Óscares.

Nós, deste lado, acreditamos que o efeito da promoção pode muitas vezes ganhar a meta da projeção, mas o objetivo de acertar em cheio no coração de quem vê «Ice Merchants», sem necessidade de qualquer diálogo e com tamanho carinho daquelas personagens, a corrida está ganha e essa ninguém lha tira.

Para o futuro, Bruno Caetano está lotado de novos projetos, aqui e internacionalmente, entre eles, a sua segunda curta-metragem (depois de «O Peculiar Crime do Estranho Sr. Jacinto»), assim como filmes de outros realizadores, como Emanuel Nevado, que trabalha na Aardman Animation e vai realizar o seu primeiro filme, e muitos outros. Trabalho não vai faltar!

Por seu lado, João Gonzalez quer apenas isolar-se, durante um mês, para se voltar para dentro e dedicar-se ao seu novo projeto (de animação). Já tem alguns pontos de partida, mas precisa de um tempo sozinho para acertar a narrativa.

Já nós, só podemos agradecer o falhanço no teste de matemática e a forma como a vida orientou João Gonzalez no caminho do seu talento, oferecendo-nos a sua criatividade e a sua harmonia musical, que fazem toda a diferença em «Ice Merchants». Dia 12 de março estaremos colados à televisão para assistir a um momento histórico, não só por ser o primeiro filme português nomeado para um Óscar, mas porque o «Ice Merchants o merece, porque devemos celebrar mais o sucesso dos nossos e porque pode, realmente, ser a primeira vez que vamos ouvir “obrigado” no palco do Dolby Theatre, em Hollywood.

https://www.youtube.com/watch?v=97ejQ9hAskc
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