Depois de ser bem-sucedida na comédia, a britânica Michaela Coel lança-se sem paraquedas para uma série complexa, moderna e bastante ousada. Fiquem com a opinião da METROPOLIS, que teve acesso antecipado à temporada completa de «I May Destroy You».
Não é fácil explicar num artigo o que é «I May Destroy You», cujo primeiro episódio é disponibilizado amanhã pela HBO. A série, criada por Michaela Coel (Pastilha Elástica), é um misto de muitas coisas e ao mesmo tempo. É certo que há uma discussão central e alargada: a questão do consentimento na relação sexual e a própria causa-efeito de uma vida mais “irresponsável” – como é vista pela sociedade –, mas o estilo narrativo é tão complexo que, a certa altura, a storyline revela-se uma multiplicação de storylines que “manipulam” o espectador a seu bel-prazer.
Arabella (Michaela Coel) é uma influencer em estado de graça depois de ter publicado o livro “Chronicles of a Fed-Up Millennial” [algo como “crónicas de uma milennial aborrecida/incomodada”]. O sucesso aconteceu por acaso, fruto da sua participação ativa nas redes sociais, pelo que trabalhar para uma nova obra é algo que não a motiva. A iminência de uma deadline é anunciada como a grande tragédia dos seus dias, a par da separação – temporária ou não – do seu interesse amoroso italiano, Biagio (Marouane Zotti). No entanto, quando acorda com uma ferida na cabeça e o telemóvel partido, esse poderá ser o menor dos seus problemas.
A memória vem em flashes e o espectador é colocado na perspetiva da protagonista, recebendo a informação na mesma medida – no que à sua linha narrativa diz respeito. Ainda assim, o facto de não estar tão desgastado, permite-lhe perceber as coisas com maior clareza… E é aí que começa a primeira ilusão. Toda a gente acredita ter uma palavra a dizer sobre o abuso sexual que Arabella sofreu (mesmo sem se lembrar totalmente do sucedido), apontando responsabilidade à vítima e sugerindo os próximos passos, mas a verdade é que ninguém sente o mesmo que ela. É então que entra um incrível trabalho de realização, que torna «I May Destroy You» uma viagem alucinante; com algumas “interrupções” a meio, é certo.
Terry (Weruche Opia) e Kwame (Paapa Essiedu) completam o trio de protagonistas. Um conjunto de millennials descomprometidos, “libertinos” e a viver no limite. Em contrapartida, surgem personagens supostamente mais bem resolvidas que, depois, se revelam na sua própria mentira. A narrativa não julga e, assim, vai desafiando a noção que a audiência tem do que é socialmente (ou moralmente) aceitável. Esse é o primeiro passo para uma das principais defesas da série, que lhe é intrínseca e natural: os limites de cada um dependem de si próprio, mas os comuns devem ser respeitados.
Michaela Coel traz para primeiro plano temas menos frequentes na esfera televisiva: a possibilidade de haver violação numa relação consensual, tanto hétero como homossexual, o direito à individualidade/solidão de personagens coadjuvantes sem isso ser um problema ou truque, ou a discriminação de africanos no Reino Unido (com a estereotipização da cultura africano-caribenha), entre outros temas. Há também temas laterais e atuais como o boom e adição das redes sociais, as drogas de facilitação sexual e a investigação do abuso. Um leque muito vasto de narrativas prementes que podem despontar a qualquer momento.
Apesar da sua qualidade inegável, «I May Destroy You» não é uma série fácil e imediata. “Pensei que estavas a escrever sobre o consentimento”, diz, a certa altura, uma personagem secundária. “Também eu”, responde Arabella, na perceção intra e extra-narrativa de que a série é muito mais do que parecia à partida.
Michael Coel entende o argumento da mesma forma que entende a vida e a sexualidade na série: é um processo fluído, nunca demasiado agarrado ou dependente de si próprio, e a experiência será sempre, e necessariamente, individual. A série, que conta com um total de 12 episódios, não vai agradar a todo o público – nem seria esse o objetivo –, mas não vai deixar ninguém indiferente.