Uma marcante memória de infância de Viktor Kossakovsky (n. 1961) está na génese de «Gunda»: quando tinha quatro anos, o realizador russo passou meses de um inverno rigoroso numa aldeia onde se afeiçoou a um pequeno leitão que, por causa do frio, a família decidiu levar para dentro de casa. Nesse curto período de tempo, em constantes brincadeiras domésticas, tornaram-se os melhores amigos; mas chegado o dia de Natal, já se está a ver o que é que foi servido ao jantar… A partir desse momento, uma criança soviética traumatizada tornou-se vegetariana convicta. E, ao longo dos anos, o desejo de fazer um filme sobre animais da quinta tornou-se um objetivo pessoal, embora difícil de concretizar – digamos que não é atraente para um produtor a ideia de um filme sobre porcos, galinhas e vacas.
«Gunda» é isso mesmo. Um olhar que documenta (e não propriamente um documentário) o modo de existência de uma mãe porca, com as suas crias, adicionando uns cameos de galinhas e vacas. Kossakovsky não recorre a texto em voz off, ou qualquer banda sonora para além dos sons da natureza, e filma a preto e branco como forma de concentrar a atenção do espectador nos olhos dos animais, que funcionam como “janelas para a alma”. Se dúvidas houver, veja-se a porca epónima, sozinha no duradouro plano final, a encarar a câmara numa espécie de interrogação magoada…
Pode dizer-se que «Gunda» é a versão realista e adulta de «Um Porquinho Chamado Babe», mas isso será pouco para definir a sua graciosidade. O minimalismo de Kossakovsky – que inclusive deixa a presença humana totalmente fora do quadro – torna a experiência invulgar. Trata-se, no fundo, de um puro ato de observação, sem convenções narrativas e um respeito absoluto pelos animais enquanto seres sencientes.
O facto de o realizador assumir um discurso forte em entrevistas, no sentido de este ser um filme determinado a levar as pessoas a deixar de comer carne (já «Um Porquinho Chamado Babe» tinha tido esse efeito em muita gente), não interfere com aquilo que vemos no ecrã. «Gunda» constrói a sua linguagem de empatia apenas pela sensibilidade da lente, sem artifícios distrativos, procurando nos gestos quotidianos da mãe porca e dos seus leitões a expressão de uma certa dignidade cinematográfica. Não é simplesmente bonito, é sobretudo ético e serenamente tocante. É o cinema a abdicar do homem para dar aos animais o seu momento, sem a arrogância de tentar colocá-los à nossa imagem.
Título original: Gunda Realização: Viktor Kosakovskiy Documentário Duração: 93 min. EUA/Reino Unido/Noruega, 2020