Ryûsuke Hamaguchi dá sua palavra… e suas imagens… contra o artificialismo
Rodrigo Fonseca no Festival de Cinema de San Sebastián
Entre março e julho deste ano, o cineasta Ryûsuke Hamaguchi, nascido há 42 anos em Kanagawa, no Japão, teve um desempenho invejável na História do cinema, em anos recentes, com uma produtividade que só o sul-coreano Hong Sangsoo tem igual. Ele teve um par de longas-metragens lançadas em dois dos maiores festivais do planeta – a Berlinale e Cannes – e saiu da Alemanha com o Urso de Prata (Grande Prémio do Júri), por «Wheel of Fortune and Fantasy», e da estância balnear francesa com a láurea de melhor argumento, dado a «Drive My Car». Não poderia ter um melhor fecho este ano do que levar ambos os filmes ao 69º Festival de Cinema de San Sebastián, na mostra Perlak, concorrendo ao prémio do júri popular do norte espanhol.
“Venho tentando apenas observar a interação entre as pessoas e entender como elas lidam com as dificuldades da vida”, disse o cineasta à METROPOLIS, antes de concorrer em Berlim.
O seu país consagrou Akira Kurosawa, Yasujiro Ozu, Kenji Mizogushi, Tazuko Sakane, Mikio Naruse, Nagisa Oshima, Kinuyo Tanaka, Shôhei Imamura, Hayao Miyazaki, Naomi Kawase, Hirokazu Koreeda, Makoto Shinkai, Takashi Miike e muitos titãs das telas. Ryûsuke Hamaguchi agora há de se colocar perto desses gigantes. Em «Drive My Car», ele estabelece o diálogo com a prosa de Haruki Murakami, um dos maiores escritores da atualidade, numa narrativa longa, de 179 minutos de ardor. “Só o que eu busco é fugir do supérfluo e buscar o essencial que cada um de nós tem”, disse Ryûsuke Hamaguchi. “Esse essencial pode transparecer numa fala.
Na sua trama, que fez San Sebastián salivar, Yusuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima) interpreta um ator e diretor de teatro casado com a argumentista de TV Oto (Reika Kirishima). Ela morre repentinamente depois de deixar um segredo. Dois anos depois, Kafuku, ainda incapaz de lidar plenamente com a perda de sua mulher, recebe uma oferta para dirigir uma peça num festival de teatro e dirige para Hiroshima com o seu carro. Lá, ele conhece Misaki Watari (Tōko Miura), uma motorista reticente designada para se tornar a sua motorista. Misaki é uma jovem que esconde os seus próprios demónios por debaixo da sua frieza, agindo sempre de modo profissional. Enquanto passam tempo juntos, Kafuku enfrenta o mistério da sua esposa que silenciosamente o assombra.
E há um detalhe a mais, crucial para a trama: Kafuku se prepara para os seus papéis dirigindo pela cidade em sua vintage SAAB de duas portas (o “carro” do título, «Drive My Car»), praticando as suas falas em trânsito. É uma prática que ressalta o quanto as figuras criadas por Ryûsuke Hamaguchi desde a sua estreia como diretor, em 2003, com a curta «Like Nothing Happened». Desde então, ele filma tendo o americano John Cassavetes (1929-1989), vencedor do Urso de Ouro na Berlinale 1984, por «Amantes» («Love Streams»), como a sua principal referência. “A maior lição de Cassavetes é revelar ao cinema que a matéria essencial para se esculpir dramas é o quotidiano de pessoas, na maneira como estas conduzem suas inquietações”, explica o diretor.
Três histórias aparentemente autónomas sobre o desejo, ambientada no Japão atual, fazem do drama «Wheel of Fortune and Fantasy» uma pérola no atual cenário do cinema japonês. Os seus segmentos são baseados em angústias femininas Há uma série de situações distintas na longa-metragem: a) uma jovem modelo fotográfica tenta estabelecer um triângulo amoroso com um quase casal; b) uma jovem cria uma armadilha afetiva para um arrogante professor ao ler um conto sexual para ele; c) uma jovem lésbica esbarra com uma mulher na rua, que acredita ser uma velha amiga, e esta, mesmo sem ser a tal pessoa imaginada, aceita representar esse papel. São situações calcadas na arte da palavra, mas que revela muito sobre a opressão da mulher na sociedade japonesa, de ontem e de hoje.
“O meu papel como cineasta é procurar uma naturalidade que soe orgânica, combatendo uma releitura artificial da vida”, disse o diretor, indicado à Palma de Ouro de Cannes em 2018 com «Asako I & II», sempre falando sobre a solidão. “Por ser uma ilha, por se pensar como uma ilha, o Japão não facilita muito o deslocamento das pessoas de região em região. Vivemos sob uma constante sensação de que estamos desconectados do mundo e uns dos outros. Daí o valor da palavra. A palavra pode ser uma instância de comunhão”.