Gaspar Noé leva San Sebastián a seu ‘Vórtex’ de transgressões
Rodrigo Fonseca no Festival de Cinema de San Sebastián

Para onde quer que se olhe em San Sebastián, nestes dias da 69ª edição do festival anual de cinema da cidade espanhola, encontra-se Gaspar Noé pelas ruas. O diretor francês que deu ao planisfério cinéfilo uma aula de tensão e lisergia com «Irreversível», há 19 anos atrás, anda afoito pelas atrações da programação organizada sob a curadoria de José Luis Rebordinos, conferindo sessões ao lado da plateia local. Domingo, já era quase meia-noite quando a METROPOLIS esbarrou com ele na saída de «Illusions perdues», de Xavier Giannoli.

“Em França, o cinema é um objeto de culto de todos nós, desde a mais tenra idade, o que transforma a cinefilia em uma prática juvenil, na busca da liberdade pelas vias da arte. E nós preservamos esse amor, com o tempo. Passei por um problema de saúde recente, antes de a covid-19 se espalhar pelo mundo, tendo detectado uma hemorragia, e fiquei um longo período de resguardo, vendo filmes clássicos, mergulhando em diretores japoneses como Naruse”, disse Noé em uma conversa em Locarno, onde exibiu o monumental «Vortex», drama que o traz agora a San Sebastián.

Espanhóis e convidados estrangeiros choravam litros com essa cartografia do envelhecimento – tanto de pessoas, quanto do cinema como manifestação artística – rodada por Gaspar Noé. Trata-se de uma experiência quase fúnebre, narrada com uma tela dividida, com ações distintas acontecendo em dois hemisférios paralelos, construído a partir de improvisos com o elenco. É na sua trupe que Gaspar Noé tem o seu principal chamariz: ao lado da veterana Françoise Lebrun (estrela de «A Mãe e a Puta», de 1973) e do jovem Alex Lutz, está em cena um mestre do terror, o diretor Dario Argento. E a atuação do diretor de «Suspiria» (1977) e «O Pássaro com Plumas de Cristal» (1970) – clássicos do giallo, o horror à italiana – comoveu Locarno, no retrato de um artista acossado pelo Tempo e pela gradual destruição da lucidez de sua mulher.

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Foto do realizador


“Acredito que existe um toque de absurdo no quotidiano parecido com o que você encontra em filmes como «Os Parasitas da Morte» [«Shivers» (1975)], de David Cronenberg, ou em «Ensaio de Orquestra» [1978], de Fellini, nos quais a estranheza se embrenha em ritos do dia a dia. Mas, no caso da obra de Argento, não se fala em absurdo e, sim, numa elegância singular. Ele é um mestre e eu o tratava como tal, nos sets. Dei sorte do filme que ele está preparando, como realizador, «Occhiali neri» ter atrasado. Com esse atraso, ele teve tempo de filmar comigo”, explicou Noé.

Classificado pela imprensa europeia como obra-prima, «Vortex» é um tristíssimo conto existencial (e psicanalítico) sobre a velhice e as dicotomias da memória, em analogia à própria arte cinematográfica e seus suportes, os físicos e os digitais. De um lado da tela dividida vemos, quase todo o tempo, Françoise Lebrun a atuar, no papel de uma mulher às voltas com o Alzheimer, e, ora ou outra, com seu filho dependente químico, vivido por Alex Lutz. Do outro lado vem a apoteose desse “filme saudade”: Argento, hoje octogenário, interpreta um crítico de cinema devotado a escrever um livro, chamado “Psique”, sobre sonhos e o audiovisual.

“Encontrei um apartamento antigo em Paris e tentei transformá-lo em um universo paralelo, no qual o passado impera. E lá filmamos, protegidos do coronavírus, por quase um mês”, diz Gaspar Noé. “Dario ficava lá e interagia connosco trocando ideias. O seu personagem não se ancora na tecnologia. Está cercado de livros. Sinto que a surpresa não deve ser uma cobrança para um artista. Fiz um filme diferente, pois senti a necessidade dessa história. Mas não criei com base em nenhuma imposição”.

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