Se há filme que pode condensar os grandes temas da galáxia “bergmaniana” — desde o medo da transcendência até à persistente insatisfação dos desejos, passando pelo logro como componente visceral de qualquer relação humana —, «Fanny e Alexandre» é, por certo, esse filme. Por alguma razão, esta história íntima e tocante de dois irmãos numa família de Uppsala, no começo do séc. XX, era tida pelo próprio Ingmar Bergman (1918-2007) como um dos seus trabalhos mais genuinamente autobiográficos.
Em todo o caso, vale a pena sublinhar o aspecto mais óbvio deste projecto. Estamos, de facto, perante um filme de cinema (passe a redundância) que foi concebido também como uma série televisiva. E nestes tempos desastrosos em que, entre nós, a noção de produção televisiva tende a ser devorada pelo poder avassalador das telenovelas, importa, mais do que nunca, lembrar que a versatilidade dos produtos televisivos não é, de modo algum, uma ideia “provocatória” de alguns críticos (de cinema ou televisão), mas sim uma via criativa que, desde muito cedo, foi abraçada por cineastas como Bergman — ou ainda Roberto Rossellini, Jean-Luc Godard e Michelangelo Antonioni.
As experiências de Fanny (Pernilla Alwin) e Alexandre (Bertil Guve) são, desde o princípio, marcadas por um revelador contraste: de um lado, o seu mundo imaginário, de uma liberdade utópica, que parece encontrar a sua materialização mais depurada no teatrinho miniatura que Alexandre trata como uma espécie de templo inexpugnável; do outro, as regras e perversões de um universo de adultos em que, não poucas vezes, a mútua destruição parece emergir como primado da lei.
Não por acaso, no coração destas tensões, Bergman situa a descoberta da morte, ou melhor, o confronto das suas personagens centrais com o domínio de um indizível para que nenhuma educação as prepara. Nesta perspectiva, «Fanny e Alexandre» é um filme em que o desespero mais fundo pode coexistir com a mais cristalina das alegrias — para quem nunca viu um filme de Bergman, começar por aqui será, por certo, uma aventura compensadora.
Título original: Fanny och Alexander Realização: Ingmar Bergman Elenco: Pernilla Alwin, Bertil Guve, Gunn Wallgren, Jan Malmsjo, Erland Josephson Duração: 188 minutos Suécia, 1982
[Texto originalmente publicado na revista Metropolis nº23, Outubro 2014]
https://www.youtube.com/watch?v=tDlA_QZmqkM