Ao exibir «Eu Capitão» na abertura do festival de Küstendorf, na Sérvia, no mesmo dia em que recebeu uma indicação ao Óscar de Melhor Filme Internacional pela longa-metragem, Matteo Garrone explicou que seu maior medo, em relação a essa produção, era cair no arquétipo do “branco de classe média que vai à África explorar a miséria alheia”. Rodado no Senegal, o seu mais recente (e mais encantador) exercício autoral de observação da obstinação (o seu tema por excelência) acompanha a jornada de dois rapazes de Dakar em direção à Itália. A fim de se proteger de acusações e, mais do que isso, de gerar (e gerir) um processo criativo ético, ele fez dos seus protagonistas e de técnicos de origem africana seus coautores. Colheu opiniões, ouviu sugestões, delegou poderes, acatou dicas. O resultado simbólico do seu rito de troca: uma esplendorosa combinação de fábula, melodrama e reflexão social sobre exclusão. O resultado prático: o prémio de Melhor Direção no Festival de Veneza.

Na ocasião das filmagens, Garrone andava com a cabeça em universos fabulares, ainda sob o efeito do seu «Pinóquio», exibido na Berlinale de 2020. No elenco daquela joia sobre os riscos do verbo “amadurecer” estava Roberto Benigni, oscarizado ator e realizador de «A Vida É Bela» (1998), com o qual «Eu Capitão» tem imensas afinidades. É uma saga com os pés no chão sobre perigos da imigração. Mas ela dialoga com o sucesso hollywoodiano de Benigni por investir nos poderes da imaginação. O seu personagem central, Seydou, salva-se de humilhações e de privações flanando pela esfera do delírio e do sonho, sem jamais se desfocar dos deveres e dos calos em sua mão, que se extenua em trabalhos forçados como pedreiro.

O intérprete principal também se chama Seydou. Seydou Farr. Ele saiu de Veneza com o troféu Marcello Mastroianni de Melhor Estrela Revelação. O protagonista ficcional Seydou tem 16 anos e junta-se ao primo de mesma idade, Moussa (Moustapha Fall), numa jornada de Dakar para a Sicília, em busca de uma vida melhor. Passa por toda a sorte de percalços para isso, encarando um deserto escaldante, tropas armadas e barcos lotados. É uma narrativa tensa, mas comovente, que conversa visualmente com a tradição do grande cinema italiano moderno, em especial «Terraferma» (2011) e «Fuocoammare» (Urso de Ouro de 2016).

A sua engenharia de som é impecável ressalta os gritos da embarcação em que Seydou assume o posto de capitão. Antes de chegar lá, passa por uma série de peripécias que desenham o filme de Garrone num registo de aventura, com direito a um estudo sobre perseverança, parecido com o que o cineasta fez no pouco citado «Reality», pelo qual ganhou seu segundo Grande Prémio do Júri em Cannes. O primeiro veio por «Gomorra» (2008), que consagrou o seu nome e fez dele uma certeza de renovação da Itália nas telas, num processo de Ressurgimento (que é gravado com letra maiúsculo, indicando um movimento) acompanhado de perto por «Il Divo» e «A Grande Beleza», de Paolo Sorrentino.

Título original: Io capitano Realização: Matteo Garrone Elenco: Seydou Sarr, Moustapha Fall, Issaka Sawadogo Duração: 121 min. Itália/Bélgica/França, 2023

[Texto publicado originalmente na Revista Metropolis nº103, Fevereiro 2024]

https://www.youtube.com/watch?v=QDoKDXMH6r4

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