A propósito da estreia recente de «O Ano da Morte de Ricardo Reis», adaptação da obra homónima de José Saramago e destaque na última edição da Metropolis nº75 (na secção Antevisões), recordamos a entrevista publicada aquando da estreia de «O Cinema, Manoel de Oliveira e Eu» (2016) na Metropolis nº43. Neste filme, João Botelho, destaca os elementos de mise en scéne e postura artística que influenciam as suas obras, aprendidas com o mestre Oliveira e que agora podemos encontrar, bem visíveis, nesta ficção a preto e branco da relação entre o heterónimo Ricardo Reis e o seu criador Fernando Pessoa: a integridade do autor, a busca pela depuração formal das suas obras e a importância do plano e da sua composição numa cena.

Este filme é uma declaração de amor ao cinema, como já foi escrito, ao cinema de Manoel de Oliveira e uma forma pública de expressar gratidão pela sua obra …
Exatamente. Tinha uma dívida para com o Oliveira …

Para ele e para a obra dele…
Foi ele que me levou para o tipo de cinema que eu faço. Disse-me sempre filme naquilo que acredite que é. Ensinou-me a não ceder. Uma vez disse-me: “Nunca ceda!”. Filme o que julgue que é verdade. Filme a sua rua se julga que é melhor que a minha! Filme a sua verdade e ao mesmo tempo diga que é tudo mentira.

Uma moral, não é?
Uma ética! Uma ética do cinema. Ensinou-me aquela frase que eu cito sempre, é a mais engraçada: “Não há dinheiro para a carruagem. Filme a roda, mas filme bem a roda!”. Ele berrava assim … Ensinou-me que o cinema não eram as histórias, mas sim o modo de contar as histórias! Não é o que se passa, é o modo como se passa … O modo de filmar… A mesma história na sua mão e na minha fazem dois filmes diferentes!

Aquela fotografia sua com o Manoel de Oliveira dos anos 1980 … Gostava que traçasse um paralelo entre os anos 1980 e os tempos atuais relativamente ao cinema português …
O cinema português ainda mantêm um rasgo engraçado …

Uma individualidade?
Uma diferença! Ou seja, hoje vai passar comigo (antestreia na cinemateca) um filme dum miúdo chamado Pedro Peralta [O filme é “Ascensão”]. É Maravilhoso! Pode-se gostar mais ou menos mas é um que não cedeu! É honesto! Não fez aquilo para ninguém! Fez o melhor que soube …

É aquela questão da Verdade de que falava o Oliveira…
Sim, mas o Oliveira ao mesmo tempo dizia: “Mas mostre que é mentira”. Mentir muitas vezes para chegar à Verdade! O que é verdade é o que as pessoas sentem quando vêem, o que se passa no ecrã é tudo mentira! É tudo papelão. Mostre isso, mostre que é teatro, que estão a representar!

Portanto, o cinema português manteve desde que o João começou até aos nossos dias …
Há uma linha dentro do cinema português que mantém este tipo de atitude em relação ao cinema. É um cinema de poucos meios mas de grandes ambições! O cinema tem uma ganga de pecado original, primeiro que é um negócio desde que apareceu. Segundo, porque é um mar de vampiros que roubam ao Teatro, á música, á pintura, á escultura. Roubamos e roubamos!
Portanto não é uma coisa que tenha uma autonomia, não chegou à abstração… concretiza demais. O que Oliveira me ensinou é tentar tirar-lhe a ganga que não interessa e mostrar o esqueleto, os ossos …

Depurar …
Os ossos. Mostre que isto é falso: Mostre que é ópera… E isso é muito engraçado. Ele levou-me para um caminho que não era o meu, mas que tem a ver com o respeito … ou seja, o nosso cinema é precário mas tem uma coisa que não tem preço: eu posso filmar como quem pinta, como quem escreve. Não é negócio! O negócio não é fundamental mesmo que você faça dinheiro com isto … Mas, temos uma verdade que não tem peço nenhum! Os filmes podem resistir: por exemplo, daqui a 40 anos vou ver filmes do Oliveira, e os outros de consumo rápido já não os vejo. Não consigo!
Uma das partes mais interessantes no filme é a questão do plano …
É o plano e a composição. Nós não somos cineastas do movimento, somos do tempo! Somos da duração, da composição, somos das luzes e das sombras! Não somos cineastas da ação, nem da montagem. Somos outro tipo de gente! Somos da poesia, não somos da prosa! Isso é verdade! O que é importante em Portugal é a poesia.

É aquela coisa da atitude. Tem a ver com os nossos modos de ser e de agir, de viver e de sentir. A contemplação: somos da contemplação e não somos da ação. E o nosso cinema também é isso: a ideia do tempo, do vento nas árvores, dos lugares, da maneira como se pega num copo …

E o Oliveira captou muito bem isso? Sempre?
Sim. Sempre! O Oliveira, e as pessoas esquecem-se disso, começou a sua vertigem cinematográfica aos 70 anos. Até aí tinha feito 6 filmes! Eu nunca tive o sofrimento que ele teve: entre o primeiro filme e o segundo, doze anos de intervalo; e entre o segundo e oterceiro, quinze!

Queria pegar naquelas máximas do Oliveira que estão no filme (Filme aquilo em que acredita, para cada situação há só uma posição de câmara, peça todos os meios possíveis, se não há dinheiro para filmar a carruagem, filme a roda…) e pedir ao João que em termos da rodagem dum filme concretize essas máximas …
Por exemplo, agora em princípio vou fazer a “Peregrinação” (do Fernão Mendes Pinto). Já filmei coisas no Japão e na China. Vou usar cromas com projeções. Abordar a temática da tolerância entre as civilizações. Vivemos a época dos nacionalismos, ninguém respeita ninguém. Por exemplo, a elipse: uma ideia de passagem do tempo. Lembro-me que fiz uma muito engraçada no filme «Tempos Difíceis» – um miúdo com 8 anos pendurava um lenço e quando o tirava já tinha 20 e tal anos… E as pessoas acreditam nisto, porque passa o tempo. Uma ideia de passagem do tempo. Esse tipo de coisas – o tempo do cinema não é o tempo da vida. Os americanos reproduzem o real e mandam as pessoas para dentro do écran. O Oliveira dizia nunca deixes ninguém entrar dentro do ecrã. “O ecrã é seu! Faça distância! Diga que isto é falso. O que é verdade é o que as pessoas sentem quando estão a ouvir o que eu digo!”. Ele mandava os atores nunca contracenarem, era raro haver campo/contracampo. É preciso que as pessoas oiçam o que os atores estão a dizer e quando os atores estão a contracenar, ninguém ouve nada, vêem só o envolvimento emocional dos atores …

Parece que é para levar os espetadores a ir ver mais vezes o mesmo filme …
É isso! A perspetiva do Oliveira era mais ambígua, era inquieta, para criar inquietação nas pessoas. Não para reconfortar. Era para inquietar. As pessoas quando vão ao cinema querem reconhecer o que já sabem. Hoje, os miúdos começam a ver um filme. Passam 10 segundos e mudam para outro. No nosso tempo nós víamos uma, duas, três, dez vezes um filme e era sempre como se estivéssemos a ver pela primeira vez, porque há sempre coisas novas. Filmes do Hitchcock, do Ford… Hoje, aquilo é uma coisa para consumir rápido. Lembro-me do distribuidor quando foi Os Maias : vai fazer 20 ou 30 mil … O que as pessoas querem, hoje em dia, é que se façam filmes onde se possa comer e beber, pois o volume maior de receitas é proveniente das bebidas e comidas (do valor do bilhete de cinema, um tanto vai para o produtor, outro para o distribuidor e o restante que fica para o exibidor é curto).

Isso não é fruição cultural …
É um divertimento! Que às vezes são fantásticos! É como a ida ao circo. Não é ir ao cinema, é ir ao circo. É como quem vai a um espetáculo, a um concerto no coliseu. Mas, não é como quem vai à Ópera! Ou a uma exibição na Gulbenkian. Nós queremos sempre que seja essa atitude: a sagração, a missa, a contemplação, o tempo para ver e ouvir, o silêncio. E hoje é este ruído ensurdecedor, é tudo a correr!

Este lado pedagógico e didático, pelo menos da 2ªparte do filme é intencional?
É. Tenho isso.

E isso foi para aproximar as novas gerações do cinema do Manoel de Oliveira?
Sim. Por exemplo, quando se dá a um miúdo de 4 anos a oportunidade de ouvir música clássica. É preciso, de vez em quando, dar oportunidades para que as pessoas possam aprender e é quando são novinhos, aos doze ou treze anos, mostrar que o cinema é uma coisa única. Há muitos miúdos que acham que o cinema começou com o Tarantino. O cinema tem mais de 100 anos! (…) Hoje, por exemplo, há uma data de cineastas norte-americanos desconhecidos entre nós, porque eles mandam os blockbusters, porque é preciso fazer dinheiro, dinheiro, dinheiro! E os outros vão para a Netflix e para as televisões …


Já nem estreiam nas salas …
Já nem sequer estreiam nas salas. Têm dificuldades. Portanto nós ainda temos esse privilégio. E isto é bom para as escolas, para os Liceus, para os cineclubes… E quero fazer isso …

Vai fazer aquele circuito das redes dos cine-teatros municipais …
Vou, vou! É uma maneira de pôr as pessoas a dizer: “Ah, afinal há outras coisas “. Tenho um lado de professor chato (risos) …

Depois da introdução e da síntese histórica da obra de Oliveira há uma curta-metragem. Fale-nos da génese desta curta …
O Manoel (de Oliveira) contou-me esta história, vagamente…

Há muitos anos?
Muitos anos! Dizia-me: “tenho tido muitos buracos na minha vida, sem filmar, não tinha dinheiro para os filmar”. Era tudo muito complicado. Não havia dinheiro! Bem, havia algum, pois ele produziu alguns filmes dele … era filho de família, a mulher também tinha alguns recursos, mas mesmo assim não chegava! O «Aniki-Bóbó» foi encomendado pelo António Lopes Ribeiro …

Mas esta história desta curta estava escrita?
Não! Ele tem um resumo da história que me contou, mas contou muito por alto. Chamava-se “Prostituição ou a Mulher que passa! Chamei-lhe “A Rapariga das Luvas” porque a mulher tinha as mãos queimadas e portanto ficou a rapariga das luvas. A ideia de ir para o bordel não é de época. O mudo e o preto e branco foi com a intenção de regressar à inocência do cinema. Que era o que o Manoel queria – já chega de tanto barulho, vamos voltar ao princípio, vamos ao Griffith, portanto a ideia é essa….

Percebe-se isso bem…
Mas é com letras contemporâneas: o piano está lá incluído … O compositor é um norte-americano que fez um trabalho perfeito …É um tipo notável. Vive aqui em Portugal. Ele trabalhou muito aqui na cinemateca …

A fazer acompanhamento dos filmes mudos ….
Sim!

A ideia de fazer a curta estava prevista desde o início …
Sim, desde o início. Bem, eu não gosto de formatações. As pessoas têm a mania de catalogar. Para mim, uma grande ficção é um documentário sempre e um grande documentário é sempre uma ficção! O resto é o ponto de vista. Os telejornais são ficção: os editores escolhem um plano e não outro, escolhem a pessoa que está a chorar e depois monta aquilo. E manipula! Portanto, não há informação verdadeira sempre, há bocados de informação. Portanto acho que a ficção e o documentário se devem encaixar e diluir um no outro… Queria fazer uma homenagem e não utilizei um centésimo da obra do Oliveira. Escolhi algumas coisas – ele tem 50 e tal filmes!. E utilizei, sobretudo, os filmes do início da carreira do Oliveira, porque foi numa altura em que convivia muito com ele. Portanto escolhi muitos do inicio e depois alguns do fim da carreira. Há ali uma nuvem no meio da carreira dele, um buraco. Mas, fiz uma escolha pois não podia fazer um filme de sete horas até porque não posso ir para as escolas com mais duma hora e meia de duração porque é o tempo da aula. Portanto, foi pensado para fazer um encaixe entre duas coisas diferentes.

O Oliveira deixou muito por contar, por ter estado muitos anos sem poder filmar?
Muito mesmo! Ele fez, recentemente, um dos filmes que tinha escrito há 40 anos. Que era “O Estranho Caso de Angélica”. Era a história duma prima que lhe contou, duma paixão… Ele tinha muitas histórias dessas.

O Manoel de Oliveira, falou-lhe alguma vez da mágoa por não ter conseguido filmar?
Tantas! Tantas! Era uma pessoa muito triste por não ter podido trabalhar… Depois vingou-se filmando e vivendo tempo demais. Conseguiu estar até depois dos 100 anos. Ele tinha um desejo, uma vontade de viver. O “Eros” dele era fantástico: as paixões que ele tinha, não concretizadas pelas atrizes. Era uma coisa impressionante. Utilizei a Leonor (Silveira) agora, mas houve uma dada altura que quis filmar com a Leonor e ele não achava bem!
Porque a Leonor era dele …

E alguma vez ele lhe falou sobre a incompreensão generalizada, pública, em relação ao cinema dele?
Sim, sim. Tenho uma história maravilhosa: uma vez, ele ganhou um Globo de Ouro na SIC. Recebeu mais de 200mil votos e apenas 8 mil pessoas tinham visto o seu filme. Passou a ser um nome, e não a obra!

E era mais pela longevidade física…
Sim, pela longevidade. Pelo Guiness Book, pelo record. Os portugueses adoram estes números: Portanto, ele tinha uma mágoa, não por não ser reconhecido, mas por não entenderem que era um cineasta de vanguarda, moderno…

Ainda bem que fala nisso, pois ele em certas etapas antecipou muita coisa …
É isso mesmo. Ainda hoje, nos filmes mais recentes ele tem sempre alguma coisa nova nos filmes dele. É o cineasta que conheço que via mais os filmes dos miúdos todos. Via muitos filmes e todas as estreias dos miúdos novos, via sempre, sempre!

João, em que fase estamos do cinema contemporâneo …
Uma fase de tragédia no cinema, parece que está num círculo que se está a fechar e é perigoso: o cinema começou nas feiras …

Os Nickelodeons!
Sim, metia-se uma moeda e via-se no meio das feiras e aquilo era um espetáculo. As pessoas iam às feiras ver aquilo e era um espetáculo. E hoje em dia é nos centros comerciais. Deu a volta toda: também é nas feiras! É o entretenimento! O cinema deixou de ser uma coisa de inquietação, de pensamento, os filmes tinham várias camadas de interpretação. Um filme do Hitchcock tinha várias camadas, de psicologia, de sociologia, de política, e tudo misturado …. Hoje é muito fácil! As pessoas vão para o cinema para a consolação, não admitem a inquietação! Não admitem sair perturbados. Quando um filme é bom a pessoa sai com vontade de ir dançar, de pintar ou de correr. Ali não! As pessoas consomem, consomem, consomem. Os Bons muitas vezes não aparecem e consome-se lixo. Isto é perigoso, mas ainda há bolsas e Portugal é uma bolsa.

E sobre a polémica dos Júris … quer falar sobre isto?
Quero, quero! O cinema depende do Ministério da Cultura, não depende do ministério do Comércio ou da Indústria. Se querem um cinema comercial têm de ir ao comércio e façam negócio como os americanos: investem dinheiro e tentam obter rentabilidade! Mas, como não conseguem vão como os empresários portugueses buscar dinheiro para fazer comércio! Há uma ideia de mercearia nesta disputa mas é uma coisa que já vem de há muito tempo.

Sim, é a velha dicotomia…
O cinema para o Público? Nunca passaram de Badajoz! O cineasta comercial português é o Oliveira porque uma venda para um canal de televisão alemão vale 100mil espetadores. Quando eles me provarem… por exemplo, querem fazer um filme com 500 mil euros, se tiverem 100 mil espetadores, aquilo tem de rendimento ao produtor, 50 mil euros. Perderam 450 mil euros. Um filme que faça 100mil espetadores e que tenha um orçamento de 100 mil euros faz muito mais. Por isso vamos a números! Quanto é que o filme rendeu? E se calhar, no final nós ganhamos! As pessoas que não tem essas ambições … Porque o cinema para mim é fazer o melhor que se sabe e depois mostrá-lo! Portanto, esta polémica está toda viciada porque isto é o Ministério da Cultura, os júris deviam ser isentos e independentes e não nomeados pelo distribuidor, pelo exibidor … Porque os interesses são incompatíveis! Isto é do Ministério da Cultura, não é o ministério do Comércio ou da Indústria! E os currículos deviam ser afixados todos os anos pelo ICA para as pessoas poderem contestar. Porque assim são interpretados pelo gosto do Júri. Já tive votações de 5 e de 9. Depende do Júri: isso não faz sentido! Por exemplo, os Júris deviam ver os filmes anteriores dos candidatos, porque é cinema, não é argumento! Não são histórias. Esse tipo de coisas está tudo errado! Não tenho nada contra o cinema comercial, mas as regras tem de ser iguais para todos!

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