O que pode acontecer quando um cineasta herói de uma geração fica aquém das espectativas? Acontece «Em Parte Incerta», um Fincher suave e pensado para agradar às exigências de um mercado americano que tem sido severo para os cineastas autores. O filme, longe de desiludir, é a prova de que todos os grandes realizadores americanos, a dada altura, escorregam na concessão. Repito, esta adaptação do bestseller de Gillian Flynn não é um mau filme, mas parece longe do universo fincheriano. Às vezes, parece até ceder aos caprichos da regra do “bestseller” de mistério, não sendo talvez estranho lembrar que o argumento é assinado pela própria Flynn. A Fincher, nota-se, interessou-lhe explorar marcas de Hitchcock e todas as suas ramificações, em especial a noção de construção de uma personagem feminina, em toda a sua complexidade e enigma. Isso e um estilhaçar de convenções no formato do thriller, onde o importante é criar um diálogo com o espetador e os seus níveis de expectativa. Aí, «Em Parte Incerta» tem um verdadeiro interesse, sobretudo quando apresenta camadas provocadoras na sua encenação de humor social e de todas as parábolas da paranoia americana. Daí os muitos twists do filme tenham uma torrente de artificialidade extrema e, muitas vezes, de exagero. O que não resulta, para além de um final sem toque de génio, é um outro tipo de equívoco melodramático involuntariamente inverosímil, veja-se a resolução com a personagem da irmã…
Dito isto, importa realçar que Fincher continua a ser mestre sofisticado na arte do jogo da peripécia. É deliciosa a maneira como nos embala e desorienta nesta trama sobre o desaparecimento de uma mulher e as consequências que o mesmo vai ter num casamento aparentemente cheio de mentiras. Mais do que ser um caso de “whodunit” (quem matou), é sobretudo uma história sobre a erosão de um casamento e uma teoria de como o ódio e o amor não se descartam entre si. Noutras mãos, o humor e o melodrama da história ficariam com mais azeite. Noutras mãos também não queríamos saber tanto dos motivos de cada um, personagens, à partida, jogados à rejeição moral mais convencional. E, claro, não há realizador em Hollywood com um domínio tão matemático de uma edição meticulosa.
Ame-se ou não, «Em Parte Incerta», mesmo quando desliza para zonas menos negras, é sempre um atraente conto sobre a verdade escondida e uma história de amor verdadeiramente assustadora. E ainda um ensaio metódico sobre a dúvida e a aparência. Vemos o filme sempre no precipício do nosso preconceito ético…
Título original: Gone Girl Realização: David Fincher Elenco: Ben Affleck, Rosamund Pike, Neil Patrick Harris, Tyler Perry, Carrie Coon, Kim Dickens, Emily Ratajkowski Duração: 149 min EUA, 2014
[Texto originalmente publicado na revista Metropolis nº23, Outubro 2014]