Um filme que adapta o livro da investigação jornalística do The New York Times sobre o caso Harvey Weinstein (o magnata de Hollywood que praticou assédio, abuso sexual e intimidação nessa indústria cinematográfica até o escândalo rebentar) é, necessariamente, um filme sobre o início da era #MeToo – não um drama panfletário do #MeToo. Eis a primeiro distinção que importa fazer, para evitar equívocos em torno do título expressivo. «Ela Disse» é um filme que extrai do âmago do trabalho de duas repórteres as emoções de um percurso difícil. O percurso em busca da verdade que requer paciência e um tratamento sensível: as mulheres queriam falar, mas até ao momento em que isso aconteceu, o medo falou mais alto do que elas. No fundo, o medo é um dos protagonistas desta história.

Poder-se-ia dizer que é demasiado cedo para estar a esmiuçar um caso que ainda não arrefeceu na narrativa recente dos Estados Unidos, mas pensemos nisto: «Os Homens do Presidente» (1976), de Alan J. Pakula, estreou-se quatro anos depois do Watergate e é um monumento do cinema de fibra jornalística. A mesma que nos deu «O Caso Spotlight» em 2015 e que agora se renova em «Ela Disse». Com efeito, a alemã Maria Schrader estudou muitíssimo bem a matéria e soube usar a sua sensibilidade europeia nos detalhes visuais da abordagem de uma redação americana. Veja-se, por exemplo, como filma o espaço amplo e os escritórios iluminados, com personagens a discutir informações e métodos, envoltas numa nuvem de thriller e drama, ou como valoriza a sobriedade das suas heroínas.

Carey Mulligan e Zoe Kazan, que interpretam, respetivamente, as jornalistas Megan Twohey e Jodi Kantor, compreenderam de forma exímia a tonalidade desse drama conotado com a tensão profissional. Sem os tiques daquele tipo de heroísmo americano que depende de grandes ocasiões, por vezes desvalorizando o processo, «Ela Disse» é todo sobre o próprio processo de investigação, desde os primeiros telefonemas em 2016 até à publicação do artigo em 2017 (com a devida repercussão pública). Uma série de gestos quotidianos, entre pesquisas, reuniões, viagens de urgência e entrevistas difíceis, que transmitem o nervo da profissão, a delicadeza da arte de investigar e a empatia humana por trás de cada pergunta.

De destacar também o efeito da banda sonora de Nicholas Britell (mais conhecido pela sonoridade de «Succession»), que serve com justeza toda a dinâmica tensa do trabalho. A fatia maior da emoção está no ritmo com que se tenta contrariar os silêncios e dar as vozes à estampa.

«Ela Disse» está em exibição na SkyShowtime Portugal.

Título Original: She Said Realização: Maria Schrader Elenco: Carey Mulligan, Zoe Kazan, Patricia Clarkson Duração: 129 min. EUA, 2022

[Texto publicado originalmente na Revista Metropolis nº88, Dezembro 2022]

Imagem: © 2022 Universal Studios. All Rights Reserved.

https://www.youtube.com/watch?v=UpFD_dZiQQk&t=8s
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