Ao longo de grande parte do século XX, Hollywood deu um contributo crucial para a cristalização de uma certa mitologia da construção dos EUA no inconsciente público. Seja através da elaboração de hagiografias de figuras mestras na história da América – Washington, Lincoln e até Roosevelt, seja através da criação de uma mitologia mais ou menos simplista e optimista do passado fundador dos Estados Unidos. Um dos primeiros géneros cinematográficos a emancipar-se e a granjear grande apreço junto das multidões absortas na magia da lanterna mágica foi obviamente o western. Pode-se argumentar que um dos primeiros filmes americanos dignos desse nome «The Great Train Robbery», dirigido por Edwin S. Porter em 1903, é para todos os efeitos um western, que contém já alguns dos elementos básicos de todo o género. Porém o western em poucos anos tornou-se mais sofisticado, apresentando ao mesmo tempo linhas narrativas e caracterizações que foram seguidas durante décadas pelos cultores do género. Porém a verdade é que o western tradicional, o western de De Mille, Walsh, Ford, Hathaway, Hawks, etc. na verdade não é mais do que uma ficção fundada em mitos, literatura de cordel e opções ideológicas bem claras. O verdadeiro velho oeste na verdade não era um lugar particularmente aprazível, a vida humana valia pouco, de facto um cavalo valia bem mais. A ideia romântica do herói de chapéu branco e o vilão todo vestido de negro que se enfrentam em duelo na rua principal ao amanhecer, é uma fantasia que reflecte uma ideia formadora do que foi o passado recente da América. De facto, a realidade está muito mais próxima do sub-género bastardo que irrompeu pelos écrans de todo o mundo em meados da década de 60, falamos naturalmente do western-spaghetti.

Salvo raras excepções o protagonista do western-spaghetti é tudo menos alguém de recomendável, é quase sempre um anti-herói, misantropo e muitas vezes misógino que parece tirar um particular prazer na violência. No western-spaghetti não há fair-play, o (anti-)herói está só interessado nos seus próprios desígnios, seja o lucro, o sexo a vingança, etc., todo o bem que possa advir das suas acções é quase sempre reactivo, colateral, acidental. É curioso pensar que o western-spaghetti surgiu pouco tempo depois de John Ford ter posto um ponto final na evolução do western tradicional com o seu outonal «O Homem que Matou Liberty Valance» (1962). Em 1964 Sergio Leone inaugura uma abordagem completamente nova ao western com o seu Por um Punhado de Dólares, que na verdade era a versão italiana de um filme japonês – Yojimbo de Kurosawa, rodado em Espanha com um protagonista americano. O western-spaghetti teve tanto ou tal êxito que aquilo que parecia uma mera moda passageira durou mais de uma década tendo originado cerca de uma centena de filmes.

Quentin Tarantino não só nunca escondeu o seu amor pelo género como integrou vários dos seus elementos nos seus filmes anteriores, mas desta vez ele decidiu-se a enveredar a fundo por um género que há muito perdeu a sintonia com a alma da América.

Django Libertado
Samuel L. Jackson e Kerry Washington

A história de um emigrante alemão, que de facto é um caçador de prémios, que resgata um escravo chamado Django que o vai ajudar na caça a foragidos da lei, e que mais tarde se torna num pistoleiro de élite é por si só um filme. Tarantino estrutura o seu filme em dois arcos narrativos: a libertação de Django e a sua aprendizagem do ofício de matar ao lado do meticuloso e muito educado Dr. King Schulz; e a tentativa de Django de resgatar a sua esposa, com o improvável nome de Broomhilda, que é uma das escravas de um degenerado grande proprietário de um grande plantação do sul dos EUA. As coisas não correm de feição e o capítulo final prende-se com a vingança de Django, um dos temas recorrentes dos western-spaghetti. Os detractores de Tarantino acusam-no de muitas falhas e fraquezas, porém todos reconhecem o seu talento como argumentista, e o seu «Django Libertado» é uma pequena obra-prima de síntese de todo um género a que o autor adiciona a incontornável violência gráfica, muito humor, e ainda aquilo que para alguns é uma perturbadora leveza na abordagem de temáticas sérias, neste caso a questão da escravatura e o seu legado na história da América. Pouco preocupado com a veracidade histórica – um filme não é um documentário, e mesmo esses são muitas vezes claramente enviesados, Tarantino cria uma narrativa de enorme fôlego onde a estrutura do western-spaghetti se combina de modo perfeito com outro sub-género que lhe é caro, a blaxploitation. O resultado é o seu filme mais ambicioso, mais provocador e também o que o aproxima mais de outros grandes mestres do cinema. Uma vez mais Christoph Waltz compõe uma inesquecível personagem com o seu Dr. Schulz, Jamie Foxx retoma o legado de outros grandes ícones da blaxploitation, criando um herói que Shaft ou Coffy não desdenhariam. Mas a figura mais assustadora é a do sinistro Stephen, o escravo-capataz da plantação de Monsieur Candie. Um filme brilhante e muito divertido, onde a violência cartunesca muitas vezes se confunde com verdadeiros momentos de pura sátira, como a sequência do Ku-Klux Klan com problemas com as máscaras, ou Django a pavonear-se com roupagens setecentistas. Uma pura delícia para os sentidos que não por acaso foi nomeado para 5 óscares da Academia.

Título original: Django Unchained Realização: Quentin Tarantino Elenco: Jamie Foxx, Christoph Waltz, Leonardo DiCaprio, Samuel L. Jackson, Kerry Washington, Samuel L. Jackson, Walton Goggins, Don Johnson Duração: 165 min EUA, 2012

https://www.youtube.com/watch?v=_iH0UBYDI4g
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